Resumo: Trabalho apresentado à disciplina Fundamentos de Antropologia, do Professor Dr. Rinaldo Sérgio Vieira Arruda, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais com a tese: As Testemunhas de Jeová e o Holocausto Nazista: causas e consequências da tentativa de extermínio, sob a orientação da Professora Dra. Maria Helena Villas-Boas Concone. Buscará identificar alguns aspectos relevantes do grupo religioso Testemunhas de Jeová, de acordo com as abordagens das escolas antropológicas culturalista, funcionalista, funcionalista estrutural e estruturalista.
Palavras-chave: religião, antropologia, fenômeno religioso.
“Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com sinais convencionais do comum, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado” (GEERTZ, 1989, p. 7)
A instituição religiosa conhecida desde 1931 como “Testemunhas de Jeová” constitui um grupo coeso, com uma identidade clara e estabelecida há bastante tempo, a ponto de, como mostrará esse ensaio, poder ser estudada do ponto de vista antropológico.
Após uma contextualização histórica da origem do grupo, serão apresentadas possibilidades de análise do ponto de vista culturalista, funcionalista, funcionalista estrutural, e estruturalista.
Com suas sementes lançadas no século I d.C., o cristianismo foi a força organizadora do mundo ocidental durante cerca de 1500 anos. Entretanto, a partir do Renascimento, esse mundo “começou a encontrar novas fontes de inspiração para si no ideal do progresso”. (DAWSON, 2010, p. 103) A fé na razão e na capacidade de compreensão do homem, e sua responsabilidade pelo seu próprio destino passaram a nortear os desenvolvimentos sociais, que encontraram nos ideais Iluministas e na Revolução Francesa algumas de suas expressões mais eloquentes.
Esses desenvolvimentos situam-se na origem de muitos dos acontecimentos do século XIX. A humanidade entrava no período do maior desenvolvimento da manufatura, dos transportes rápidos e dos meios de comunicação de toda a história. O aperfeiçoamento da máquina a vapor por James Watt (1736-1819) no final do século anterior contribuiu decisivamente para o avanço da Revolução Industrial, que, por sua vez, ocasionou profundas transformações sociais, entre outras, a migração da população campesina para as metrópoles, e o surgimento do fenômeno da multidão. Igualmente, a locomotiva a vapor levou à expansão das ferrovias, que passaram a cruzar países inteiros. O telefone (1876), o fonógrafo (1877), a luz elétrica (1879) e o linotipo (1884), vieram a juntar-se ao exército de invenções que pareciam colocar nas mãos do homem a completa responsabilidade por seu destino.
De modo muito consistente com esse contexto, foi em 1848 que Karl Marx e Friedrich Engels publicaram O Manifesto Comunista, propondo um rompimento da dominação burguesa capitalista, para eles apoiada e alimentada pela religião. É nessa abordagem que se insere a metáfora da religião como “ópio do povo”, declaração que consta em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1844. (HERVIEU-LÉGER e WILLAIME, 2009, p. 23). É desse período também a publicação da obra A Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin (1809-1882), que influenciou profundamente o ambiente científico e religioso da época, como mais um elemento a afastar o homem do divino.
Por outro lado, porém, esse ambiente motivou vários grupos a buscar um retorno aos valores espirituais, ofuscados então pelos desenvolvimentos científicos e tecnológicos. Um dos temas de particular interesse desses grupos eram as profecias messiânicas referentes à volta de Cristo e ao fim do mundo. Assim, William Miller (1782-1849), pioneiro do desenvolvimento adventista, previu o retorno de Cristo para 1844, o teólogo alemão J. A. Bengel para 1836, Edward Irving (1792-1834), baseado em cujos ensinos fundou-se posteriormete a Igreja Católica Apostólica, para 1864, e menonitas russos para 1889 e depois para 1891 (WATCHTOWER BIBLE AND TRACT SOCIETY OF NEW YORK, INC., 1993, p. 40).
Um desses grupos foi organizado por Charles Taze Russel (1852-1916). De ascendência escocesa-irlandesa, filho de presbiterianos, foi criado num lar com fortes inclinações religiosas. Desde cedo demonstrou ter um bom tino comercial, e já bem jovem dirigia uma próspera loja de roupas masculinas junto com seu pai, de quem era sócio. Entretanto, desde cedo também nutria um grande desconforto com várias concepções religiosas comuns em seu ambiente. Por exemplo, para ele a doutrina calvinista da predestinação não se harmonizava com ideia de um Deus que concede livre arbítrio a suas criaturas inteligentes. Além disso, a doutrina de um inferno de tormentos eternos não lhe parecia consistente com um Deus de amor (ZYDEK, 2010, p. 11). Assim, conforme o professor Fredick Zydek, do College of Saint Mary e biógrafo de Charles T. Russel, à idade de quinze anos, Russel, já um pensador independente, iniciou por sua conta, uma investigação de todo o material bíblico e religioso ao qual pudesse ter acesso, incluindo as principais religiões orientais. Aos 18 anos reuniu um pequeno grupo de pesquisadores bíblicos com interesses comuns. Eventualmente ele deixou os negócios e dedicou-se integralmente às investigações. Os estudos e conclusões desse grupo e de outros que se juntaram a ele passaram a ser publicados quinzenalmente a partir de 1879 no principal periódico impresso da organização fundada por ele (a Zion’s Watchtower Society), usado até hoje, e que na época chamava-se Zion’s Watch Tower and Herald of Christ’s Presence (hoje chama-se A Sentinela).
A partir daí, organizou-se um corpo doutrinário e de conduta que passou a agremiar adeptos em todo o mundo, notadamente através do trabalho de proselitismo, que é a atividade fundamental da organização. Esse trabalho internacional de pregação é apoiado pelo uso extensivo da página impressa, e, mais ultimamente, das mídias eletrônicas.
3. Características antropológicas do grupo
A antropóloga Ruth Benedict, em sua obra O Crisântemo e a Espada sobre a sociedade japonesa, afirma que “uma sociedade humana precisa preparar para si mesma um projeto de vida, aprovando modos determinados de enfrentar situações, modos determinados de mensurá-los” (BENEDICT, 2002, p. 18). Conforme pretende demonstrar esse ensaio, tal é o caso das Testemunhas de Jeová.
De acordo com o último relatório mundial da entidade, existem 7,5 milhões de membros ativos, isto é, que participam da divulgação das doutrinas, normalmente de casa em casa, organizados em 105.000 congregações distribuídas em mais de 240 países. Esses números evidenciam uma grande variedade de origens étnicas e raciais entre seus membros, o que não deve obstar a que seja possível um estudo antropológico do grupo. Conforme Franz Boas “a cultura é um determinante muito mais importante do que a constituição física”. Ademais, na visão da antropologia cultural “não há justificativa para a suposição de qualquer relação estreita entre tipos biológicos e forma cultural” (CASTRO, 2004, p. 97).
Que elementos culturais, então, são compartilhados pelos membros desse grupo, de modo a permitir sua caracterização como um sujeito etnográfico?
Um deles é a própria constante busca da superação de quaisquer barreiras étnicas, que os leva a, mesmo sob extrema pressão, não apoiar qualquer movimento motivado por ódio ou preconceito racial. Conforme uma de suas publicações, “mesmo se fosse possível encontrar diferenças científicas entre as raças, a idéia de uma raça “pura” é ficção. The New Encyclopædia Britannica menciona: “Não existem raças puras; todos os grupos raciais que existem atualmente estão completamente miscigenados.” De qualquer modo, a Bíblia ensina que Deus “fez de um só homem toda nação dos homens”. (Atos 17:26) Independentemente da cor da pele, da textura do cabelo ou das características faciais, existe apenas uma única raça, a raça humana. Todos os humanos são aparentados através de Adão, nosso antepassado” (TRATADOS, 1998, p. 27). E em relação às culturas individuais de seus membros, lemos:
As Testemunhas de Jeová não desdenham da cultura dos outros. E quem se torna Testemunha de Jeová não rejeita a cultura em que foi criado, a menos que algo nela discorde dos princípios bíblicos. Em casos assim elas fazem mudanças na vida. Reconhecem que em toda cultura existem aspectos louváveis e que eles são até realçados nas pessoas que adotam a adoração verdadeira. (TRATADOS, 1996, p. 25)
Por exemplo, as Testemunhas de Jeová se mantiveram neutras durante o Genocício de Ruanda em 1994, embora cerca de 400 das 2600 delas morreram vítimas da violência étnica entre os tutsis e os hutus, a maioria de forma brutal. Correndo o risco de suas próprias vidas, várias Testemunhas de Jeová procuraram proteger outros cidadãos, independente de sua origem étnica. Calculadamente 800.000 ruandeses ou mais morreram na chacina.
Essa unidade também ficou claramente evidenciada durante o Holocausto nazista. Pequeno como o movimento era na Alemanha da década de 30, oferecia, nas palavras da estudiosa Christine King, da Staffordshire University, uma "ideologia rival" e um "centro rival de lealdade" ao movimento nazista e sua busca pela manutenção da pureza da raça ariana. Entretanto, embora as Testemunhas de Jeová não fossem favoráveis à ideologia nazista quanto a importância da pureza racial, a questão central da rivalidade ideológica naquela ocasião foi outra característica do grupo, a saber, a leitura discordante do dever de lealdade. Apesar de serem escrupulosas no cumprimento das leis civis, como as suas crenças religiosas exigem, as Testemunhas de Jeová se recusam a jurar lealdade incondicional a qualquer governo secular. Na sua concepção, o direito da autoridade secular estatal é legítimo e necessário, mas relativo. Quando em conflito, a autoridade divina precede qualquer outra forma de autoridade. Invocam como sua a mesma diretriz manifestada pelos apóstolos no primeiro século d.C., que, ante um conflito com a autoridade judaica do Sinédrio[1], afirmaram: “Temos que obedecer a Deus como governante antes que aos homens” [2]. Entendem que assim estão ‘pagando de volta a César o que é de César, mas a Deus o que é de Deus’.[3]
Elas não se consideram pacifistas e muito menos anarquistas, mas, antes, soldados de um exército de origem divina. Portanto, não podem portar armas ou símbolos de lealdade para qualquer outro governo. Em relação às disputas terrenas pelo poder, exigem o direito à neutralidade, pelo que, em parte alguma participam na composição governos ou entidades políticas ou militares de qualquer natureza.
De outro ponto vista, Bronislaw Malinowski (1884-1942) contribuiu de forma muito importante no desenvolvimento da antropologia ao fundar a escola funcionalista, inspirada na obra de Emile Durkheim. Com os princípios bastante evidenciados em sua obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1922), Malinowski busca demonstrar a importância da função dos indivíduos e das instituições na constituição e manutenção de uma sociedade. Em seu estudo de um sistema comercial e de trocas chamado kula, praticado pelos habitantes das Ilhas Trobriant entre os quais ele habitou entre 1914 e 1918, ele demonstrou que tal prática “reveste-se de um significado extremo de vida tribal dos nativos que vivem dentro do seu circuito, sendo a sua importância totalmente reconhecida pelos próprios, cujas ideias, ambições, desejos e vaidades estão diretamente relacionados com o Kula” (MALINOVSKI, 1976, p. 18).
No grupo em questão, é também possível identificar um aspecto funcional ao redor do qual desenvolve-se toda sua estrutura organizacional. Trata-se do trabalho de disseminação das doutrinas do grupo, chamado por eles de trabalho de pregação. De fato, é possível relacionar praticamente cada aspecto organizacional do grupo e da vida de seus membros com essa atividade, a começar pelo fato de que apenas os que participam desse trabalho, chamados publicadores, é que são considerados efetivamente como parte do grupo. O processo para que alguém se torne um publicador é conduzido de forma bastante cuidadosa. Inicialmente, é necessário um período de acúmulo de conhecimento dos ensinamentos fundamentais, realizado mediante um estudo sistemático e regular, que pode levar de meses a alguns anos. Esse estudo deve refletir-se na aculturação do estudante à conduta do grupo. De fato, como afirma Ruth Benedict, “aqueles que aceitaram um sistema de valores, através do qual vivem, não podem conservar por muito tempo um setor segregado de suas vidas, onde vivam e procedam de acordo com um conjunto contrário de valores, a menos que se exponham à ineficiência e ao caos” (BENEDICT, 2002, p. 18). Assim, antes de ser aceito como publicador, o postulante terá demonstrado em boa medida viver de acordo com os preceitos éticos de conduta do grupo. O ritual que marcará definitivamente a aceitação do postulante, chamado até então de estudante, será o batismo por imersão, realizado publicamente em seus congressos e assembleias.
Porém, não é somente a nível individual que se verifica a importância dessa atividade. Todas as suas reuniões, congressos e programas de treinamento, em alguma medida, visam preparar seus membros para ela. Igualmente, sua organização interna e distribuição de tarefas visam possibilitar a melhor eficiência na realização desse trabalho, seja no âmbito internacional, com suas filiais e congêneres, seja no âmbito local, com as congregações e grupos de trabalho. Assim, semelhante ao kula, e talvez até de modo mais notório, a função desse trabalho é essencial na conformação e manutenção da unidade do grupo.
3.3 Análise Funcionalista Estrutural
Proposta por Alfred Radcliffe-Brown e baseada também na teoria sociológica de Durkheim, a vertente antropológica do estruturalismo funcional tem a visão de que a sociedade é constituída por estruturas, cada uma com suas próprias funções e trabalhando em conjunto para promover a estabilidade social. Segundo ele, em última análise, para se entender um grupo é preciso entender as funções das instituições culturais dele, como por exemplo, as formas diversas do parentesco e das funções da família.
Conforme ele explica:
Entendo que, em dada sociedade, podemos isolar teoricamente, se não na realidade certo conjunto de ações e interações entre as pessoas; essas ações e interações nascem das realações de parentesco ou casamento; e entendo também que em certa sociedade tais ações estão interrelacionadas de modo que podemos dar uma descrição analítica geral delas como partes integrantes de um sistema. A importância teórica dessa noção de sistemas resume-se no seguinte: nosso primeiro passo no sentido de compreender uma feição comum de uma forma de vida social, tal como o uso de cheques ou o costume pelo qual o homem deve evitar contato social com a sogra, é descobrir o lugar dessa feição no sistema do qual ele constitui parte” (RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 15)
Nesse contexto, é possível identificar alguns procedimentos interessantes entre as Testemunhas de Jeová, quer em relação aos membros de sua família biológica, quer ao que eles chamam de “família da fé”, isto é, o relacionamento com outros membros do grupo.
Quanto ao matrimônio, por exemplo, buscam seguir o modelo que encontram na Bíblia. Sua obra Estudo Perspicaz das Escrituras afirma:
Na antiga sociedade hebraica, a família era a unidade básica. A família era um pequeno governo; o pai, como chefe dela, era responsável perante Deus, e a mãe, de forma subordinada, era a administradora dos filhos na família. ... A monogamia era o padrão original fixado por Jeová para a família. Embora mais tarde se praticasse a poligamia, esta sempre foi contrária ao princípio original estabelecido por Deus. … Ao dar os Dez Mandamentos a Israel, Deus deu atenção à integridade da unidade familiar. “Honra a teu pai e a tua mãe” é o quinto mandamento, o primeiro com promessa. (De 5:16; Ef 6:2) O filho que se rebelasse contra seus pais era rebelde contra o arranjo governamental estabelecido por Deus, bem como contra o próprio Deus. Se golpeasse seu pai ou sua mãe, ou os amaldiçoasse, ou caso se mostrasse incorrigível, ele devia ser morto. (Êx 21:15, 17; Le 20:9; De 21:18-21) Os filhos deviam ter o devido temor dos pais, e o filho que tratasse o pai ou a mãe com desprezo era maldito. — Le 19:3; De 27:16. … Na congregação cristã, a família é reconhecida como unidade básica da sociedade cristã. Nas Escrituras Gregas Cristãs dedica-se muito espaço a instruções com respeito à relação familiar. Novamente, o homem é dignificado com a chefia da família, a esposa estando em sujeição ao marido, administrando a família sob a supervisão geral dele. (1Co 11:3; 1Ti 2:11-15; 5:14) Comparando Jesus ao marido e chefe de família da sua ‘esposa’ congregacional, Paulo admoesta os maridos a exercerem a chefia com amor, e aconselha as esposas a respeitarem o marido e a se sujeitarem a ele. (Ef 5:21-33) Ordena-se aos filhos obedecerem aos pais, e especialmente o pai é incumbido da responsabilidade de criar os filhos na disciplina e regulação mental de Jeová. — Ef 6:1-4. (SOCIETY, 2000, p. 103)
Assim, em resumo, o casamento é considerado uma instituição sagrada, e constitui um vínculo permanente de união. Apenas a infidelidade e a morte são consideradas razões para seu rompimento de modo a permitir um novo casamento. São orientados a dar extrema atenção à educação dos filhos.
"As Testemunhas de Jeová incutem em seus filhos elevados princípios morais. Eles ensinam seus filhos a evitar comportamentos, ações e até mesmo atitudes que, embora considerados normais na sociedade contemporânea, podem ser prejudiciais para as próprias crianças e outros. Por isso, eles advertem os seus filhos sobre os perigos do uso de drogas, tabagismo e abuso de álcool. Eles reconhecem a importância da honestidade e trabalho duro. . . . As Testemunhas de Jeová ensinam seus filhos qualidades morais, a respeitar as autoridades, outras pessoas e seus bens e ser cidadãos cumpridores da lei ". The History of Religion in Ukraine, edited by Professor Petro Yarotskyi. (SOCIETY)
De muitas formas, seus princípios em relação à família biológica refletem-se no que consideram sua família espiritual.
Muitas congregações se compõem de pessoas de diferentes idades, raças, nacionalidades, culturas, línguas e formações sociais. Cada membro tem seus gostos e aversões, esperanças e temores, e geralmente cada um tem uma carga para carregar — talvez saúde fraca ou problemas financeiros. Essa variedade pode representar um desafio à união cristã. Então, o que pode ajudar-nos a nos alargar em amor e permanecer unidos apesar do desafio? O verdadeiro apreço por todos na congregação nos ajudará a aprofundar nosso amor uns pelos outros. Mas o que significa ter apreço por alguém? Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra “apreço” significa “estima, consideração que se tem por alguém ou alguma coisa; admiração”. Se tivermos apreço pelos irmãos, teremos grande estima e admiração por eles e levaremos em consideração suas necessidades. Em resultado disso, passaremos a amá-los muito. (TRATADOS, 2007, p. 9)
Apesar da proposta idealista, é certo que surgem desavenças entre seus membros, ou ocorre que um membro passe a agir de modo diferente dos costumes aceitos. Nessas circunstâncias, o procedimento adotado passa por três instâncias. Inicialmente, os envolvidos devem tentar resolver as diferenças entre si apenas, de modo a chegar a um acordo e prosseguir com o bom relacionamento. Conforme o caso, se isso não resolver, o próximo passo seria envolver os que estão cientes do problema (num mal entendido comercial, por exemplo) para se tentar chegar a um acordo. Entretanto, se um dos membros deliberada e conscientemente deseja adotar um proceder que viola o que eles consideram ser as normas fundamentais de conduta, esse será expulso do grupo, e os demais romperão o relacionamento com ele. (SOCIEDADE TORRE DE VIGIA DE BÍBLIAS E TRATADOS, 2008, p. 23).
O grande teórico da escola estruturalista da Antropologia é, sem dúvida, Claude Levi-Strauss (1908-2009). Inspirada pela obra do linguista suíço Ferdiand Saussure (1857-1913), essa vertente da antropologia se concentra no modo como os elementos de um sistema se combinam, e não necessariamente em seu valor intrínseco e isolado. O dinamismo de uma sociedade seria o resultado da diferença e da relação entre esses elementos. Para Levi-Strauss, seria possível identificar em qualquer sociedade, primitiva ou moderna, elementos comuns e fundamentais, identificaveis não através das estruturas aparentes, mas através da significação dessas estruturas para o grupo. Nesse sentido, como ele postula na obra Raça e Cultura, nada permite afirmar que haja qualquer tipo de superioridade de uma raça em relação a outra.
Estas formas extremas nunca foram resultado de culturas isoladas, mas sim de culturas que combinam, voluntária ou involuntariamente, os seus jogos respectivos e realizam por meios variados (migrações, empréstimos, trocas comerciais, guerras) estas coligações cujo modelo acabamos de imaginar. E é aqui que atingimos o absurdo que é declarar uma cultura superior a outra. (LÉVI-STRAUSS, 1976)
A obra As Estruturas Elementares do Parentesco (1949) é considerada o marco inicial dessa escola. Nela, Levi-Strauss analisa diversos sistemas de parentesco que permitem ou proibem o casamento entre parentes de modo diferente, demonstrando que o incesto passaria a ser interpretado não pela ótica moral e nem mesmo pela biológica, mas por razões estruturais – como um fator lógico de constituição da sociedade.
No grupo sujeito deste estudo, é possível identificar largamente várias estruturas fundamentais na sua existência. Sua hierarquia organizacional, por exemplo, denota uma busca pela implementação do regime segundo o qual o grupo pretende atuar: a teocracia. Assim, pouco se destacam individualidades no grupo. Mesmo para o fundador da organização, Charles Taze Russel, embora seja reservado um papel de importância e consideração, a ideia de se considerarem seus seguidores é rejeitada. No congresso internacional realizado em 26 de junho 1931 em Columbus, Ohio, E.U.A., declararam “que temos grande amor ao irmão Charles T. Russell pela sua obra e… reconhecemos de bom grado que o Senhor o usou e que abençoou grandemente a sua obra, mas não podemos ser coerentes com a Palavra de Deus por consentir ser chamados pelo nome de “russelitas” (SOCIEDADE TORRE DE VIGIA DE BÍBLIAS DE TRATADOS, 1973, p. 20).
Utilizam algumas sociedades jurídicas para a organização internacional das atividades, sendo a principal delas a Watchtower Bible and Tract Society of New York, Inc, que tem um presidente legal e diretores. Porém, a função dessa entidade está ligada à gestão dos recursos financeiros da organização. Os aspectos organizacionais e doutrinários em especial são coordenados por um grupo chamado Corpo Governante, cuja função e estrutura é assim descrita:
O CORPO GOVERNANTE das Testemunhas de Jeová se compõe de homens dedicados, que são servos ungidos de Deus. Eles atuam como representantes da classe do escravo fiel e discreto, que tem a responsabilidade de prover alimento espiritual e de dar orientação e impulso à obra de pregação do Reino em toda a Terra. — Mat. 24:14, 45-47.
As reuniões do Corpo Governante são realizadas todas as semanas, em geral às quartas-feiras. Essas reuniões semanais permitem que esses irmãos trabalhem juntos em união. (Sal. 133:1) Os membros do Corpo Governante também servem em várias comissões. Ao cuidar dos interesses do Reino, cada comissão tem sua área de atuação, conforme resumidamente explicado a seguir.
▪ COMISSÃO DOS COORDENADORES: Essa comissão é formada pelos coordenadores de cada uma das outras comissões do Corpo Governante e um secretário, que também é membro do Corpo Governante. Ela se certifica de que todas as comissões operem de modo suave e eficiente. Cuida também de emergências maiores, perseguições, desastres e outros assuntos urgentes que afetam as Testemunhas de Jeová no mundo inteiro.
▪ COMISSÃO DO PESSOAL: Os irmãos dessa comissão cuidam de tudo que tem a ver com o bem-estar físico e espiritual dos membros das famílias de Betel em toda a Terra. Essa comissão também é responsável por selecionar e convidar novos membros para as famílias de Betel e por lidar com questões relacionadas ao serviço deles em Betel.
▪ COMISSÃO EDITORA: Essa comissão supervisiona, no mundo inteiro, a impressão, a publicação e o envio de publicações bíblicas. Tem a supervisão de gráficas e de propriedades administradas pelas várias associações jurídicas usadas pelas Testemunhas de Jeová. Essa comissão providencia que os recursos doados para a obra mundial do Reino sejam usados da melhor maneira possível.
▪ COMISSÃO DE SERVIÇO: Os dessa comissão têm a supervisão da obra de pregação e de assuntos que dizem respeito a congregações, pioneiros, anciãos e superintendentes viajantes. Ela supervisiona a preparação do Nosso Ministério do Reino e a matrícula de alunos na Escola de Gileade e na Escola de Treinamento Ministerial, dando-lhes designações após a formatura.
▪ COMISSÃO DE ENSINO: Essa comissão supervisiona a instrução fornecida em assembléias, congressos e reuniões congregacionais. Também é responsável pelo desenvolvimento de programas de áudio e vídeo. Providencia programas espirituais para os membros da família de Betel e tem a supervisão de várias escolas, como a Escola de Gileade e a Escola do Serviço de Pioneiro.
▪ COMISSÃO DE REDAÇÃO: É responsabilidade dessa comissão supervisionar o trabalho de colocar por escrito o alimento espiritual para publicação e distribuição entre o povo de Jeová e o público em geral. Essa comissão responde a perguntas bíblicas e aprova produções tais como textos de dramas e esboços de discursos. Supervisiona também o trabalho de tradução feito em todo o mundo.
O apóstolo Paulo comparou a congregação de ungidos a um corpo humano e enfatizou que todos os membros têm sua importante função. Destacou também a cooperação em fazer a obra de Deus, a interdependência e o amor que existe entre eles. (Rom. 12:4, 5; 1 Cor. 12:12-31) Jesus Cristo, o Cabeça, supre os membros do corpo com o que é necessário para haver boa cooperação, coordenação e nutrição espiritual. (Efé. 4:15, 16; Col. 2:19) Assim, o Corpo Governante está estruturado para tomar a dianteira de acordo com a direção de Jeová por meio do espírito santo. (TRATADOS, 2008, p. 30)
De modo similar, as 116 filiais são dirigidas por comissões e 3 a 9 membros, designados pelo Corpo Governante, e, por sua vez, as 105.000 congregações locais, que são grupos de até 200 membros, são dirigidas por um grupo chamado de corpo de anciãos, designados com a aprovação da filial. Conforme explicam:
Como estamos organizados: Seguindo o modelo do primeiro século do cristianismo, as Testemunhas de Jeová não têm divisão clero-leigos. Todos os membros batizados são ministros ordenados e compartilham na pregação e trabalho de ensino. As Testemunhas são organizadas em congregações de até 200 membros. Homens maduros espiritualmente em cada congregação servem como anciãos. Um corpo de anciãos supervisiona cada congregação. Cerca de 20 congregações formam um circuito, e cerca de 10 circuitos estão agrupados em um distrito. Congregações recebem visitas periódicas de anciãos itinerantes. A orientação e as instruções são fornecidas por um corpo governante multinacional de Testemunhas de longa data que atualmente servem na sede internacional das Testemunhas de Jeová em Brooklyn, New York. Esta irmandade internacional de pessoas de todas as raças é composta de cerca de 7,3 milhões de membros praticando organizados em mais de 105.000 congregações em mais de 230 países. (SOCIETY)
É possível observar, portanto, que toda a estrutura organizacional é elaborada para refletir um regime estrutural teocrático, no qual as diretrizes são fornecidas por uma mesma fonte para todo o grupo. Essa fonte, o Corpo Governante, por sua vez, busca fundamentar suas decisões em preceitos extraídos de sua compreensão da Bíblia, à qual atribuem inspiração divina.
Parece possível, portanto, utilizar os conceitos das várias vertentes da Antropologia para um estudo dessa natureza do grupo Testemunhas de Jeová. Esse ensaio buscou tentativamente estabelecer algumas comparações entre esses conceitos e algumas observações feitas sobre o grupo. Evidentemente, conforme o texto em epígrafe de GEERTZ, nesse caso também a etnografia do grupo será uma leitura incompleta, mas que deve ser feita, pois “o objetivo da antropologia é o alargamento do discurso humano” (GEERTZ, 1989, p. 10).
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[1] Supremo Tribunal judaico, situado em Jerusalém, composto por 71 membros que incluia o sumo-sacerdote, anciãos, líderes comunitários e homens versados na lei judaica.
[2] Atos dos Apóstolos 15:20, Tradução no Novo Mundo das Escrituras Sagradas
[3] Mateus 22:21