Memória, Etnicidade e Performance do grupo religioso Testemunhas de Jeová1

 “Convencera-me de que só uma percepção grosseira e viciada coloca tudo no objeto, quando tudo está no espírito” . (PROUST, 2004, p. 185)


Introdução

Depois de um início relativamente tímido no final do século XIX, as Testemunhas de Jeová hoje constituem uma comunidade religiosa internacional de mais de sete milhões de membros, espalhados por mais de 230 países. Suas fortes convicções e uniformidade de crenças e de conduta tornam possível verificar neles uma identidade muito definida. Um fator decisivo para tanto são as muitas ações que desenvolvem, conscientemente ou não, no sentido de preservar sua memória, seja no âmbito coletivo ou no âmbito individual. Vários aspectos desenvolvidos pelos estudiosos da memória encontram ecos no grupo em questão, e esse ensaio visa apontar alguns deles.


Caracterização como grupo étnico

Inicialmente, utilizando a noção de Max Weber, de que são grupos étnicos “aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanças no habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranças de colonização e migração nutrem uma crença subjetiva na procedência comum” (WEBER, 1998, p. 271), e correto afirmar que as Testemunhas de Jeová constituem um grupo étnico. Em adição a esse conceito, Jean-William Lapierre afirma que “a etnicidade não é um conjunto intemporal, imutável de ‘traços culturais’... transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo; ela provoca ações e reações entre esse grupo e os outros em uma organização social que não cessa de evoluir”. (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 11). Em harmonia com esses conceitos, o sentimento de comunidade que se verifica entre as Testemunhas de Jeová não têm origem biológica, mas sim no compartilhamento de crenças, costumes e atitudes.

Quais são algumas dessas crenças, costumes e atitudes? Michael Pollack em sua obra Memória e Identidade Social, por exemplo, postula a existência de acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja, “acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer” (POLLAK, 1992). Entretanto, esses acontecimentos não terão necessariamente sido vividos pelos indivíduos pessoalmente – ou, pelo menos, essa memória é assimilada a ponto de se tornar parte da identidade da pessoa, de modo que não há um limite claro entre quais foram suas próprias experiências individuais e quais foram as que vieram “por tabela”.

Muitos fatos na história das Testemunhas de Jeová podem ilustrar essa memória indireta. Não que se tratem apenas de uma memória histórica. Ela vai além de um compartilhamento intelectual de experiências das gerações anteriores para vir a ser um elemento conformador de sua conduta, ou performance. Como ensina Maurice Halbwachs, “a memória coletiva... é uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o que está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém” (HALBWACHS, 2011, p. 102).

Um desses fatos históricos são os acontecimentos que envolveram o grupo durante o Holocausto nazista. As Testemunhas de Jeová sofreram intensa perseguição durante o regime nazista na Alemanha, entre os anos de 1933 a 1945. Diferente de outras vítimas, as elas tinham a opção de escapar da perseguição, bastando para isso renunciar às suas crenças religiosas, o que chegou a acontecer em alguns poucos casos. Porém, a maior parte delas se recusou a fazê-lo, mesmo em face da tortura e maus-tratos nos campos de concentração, e muitas vezes execução. Durante os anos do regime nazista, cerca de 10.000 Testemunhas foram aprisionados em campos de concentração, a maioria delas de nacionalidade alemã. Estima-se que entre 2.500 e 5.000 Testemunhas morreram em campos ou prisões, sendo que cerca de 500 foram decapitadas.

Pois bem, a observação da literatura e dos ensinos compartilhados nas reuniões e congressos das Testemunhas de Jeová permitem afirmar que essa memória é frequentemente reconstruída.  Essa reconstrução tem o objetivo de, nas palavras de Pollak, “definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais”. (POLLAK, 1989, p. 9). Por exemplo, no seguinte excerto é possível verificar a importância da reconstrução dessa memória para a definição da performance esperada dos membros:

Considere os sentimentos de [algumas Testemunhas de Jeová] que foram executados pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Ao relatar o que passou no tribunal, um deles disse: “Foi decretada a pena de morte. Eu ouvi, e daí, depois que pronunciei as palavras ‘sê fiel até a morte’ e algumas outras palavras de nosso Senhor, tudo estava encerrado. Mas não se preocupem. Eu sinto tamanha paz, tamanha tranqüilidade, que vocês nunca imaginariam!” Um jovem cristão que estava para ser decapitado escreveu a seus pais: “Já passa da meia-noite. Ainda tenho tempo para mudar de idéia. Ah! poderia eu ser feliz novamente neste mundo depois de ter negado nosso Senhor? Certamente que não! Mas agora vocês têm a certeza de que parto deste mundo em felicidade e paz.” Não há dúvida de que Jeová apóia seus servos leais. Você pode perseverar! Pode ser que você não enfrente os desafios que consideramos. Ainda assim, o fiel Jó tinha razão quando disse: “O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação.” (Jó 14:1) Você talvez seja um pai ou uma mãe que se esforça em dar orientação espiritual aos filhos. Eles têm de enfrentar provações na escola, mas como você fica feliz quando tomam posição firme a favor de Jeová e seus princípios justos! É possível que você esteja passando por dificuldades e tentações no trabalho. No entanto, essas e outras situações podem ser suportadas, pois ‘Jeová diariamente carrega o fardo para você’. — Salmo 68:19. (TRATADOS, 2007, p. 31)

Assim, a conformação à conduta esperada dos membros em atividades atuais é reforçada pela memória daqueles que chegaram a perder a vida ao invés de negarem as mesmas crenças. A importância dessa memória social foi reconhecida e defendida por Halbwachs, ao afirmar que é “através da pertença a um grupo social – nomeadamente o parentesco, as filiações de classe e de religião – que os indivíduos são capazes de adquirir, localizar e evocar suas memórias”. (CONNERTON, 1993, p. 43)


Cerimônias e ritos

Na mesma obra citada acima, Como as Sociedades Recordam, o autor Paul Connerton discute a importância das cerimônias comemorativas da reconstrução da memória. Ele cita por exemplo a pompa envolvida nas cerimônias anuais do partido nazista, por ocasião do aniversário da tomada do poder por Hitler, 30 de janeiro, que culminava com uma proclamação radiofônica que exaltava os membros da Juventude Hitlerista que haviam manifestado especial qualidade de liderança. Essa era apenas a primeira de uma série anual de cerimônias, cujo objetivo era “mais do que contar uma história, era um culto encenado”. (CONNERTON, 1993, p. 51)

Do mesmo modo, o autor evoca a importância das cerimônias para a edificação da identidade judaica. O documento escrito que constitui a essência judaica, o Velho Testamento, é um registro fundamentalmente histórico, e suas cerimônias visam garantir a perenidade dessa história. Assim a Pessah[1] celebra a libertação dos hebreus do Egito no século XVI a.C.; a Sukot[2], na qual as famílias constroem uma cabana com ramos e flores, simboliza a condição de nômades deles, após sua saída do Egito; o Purim[3] relembra a história narrada no livro bíblico de Ester, jovem judia, que conquistou a confiança do rei persa Assuero (Xerxes) e evitou uma matança dos judeus. De fato, no próprio Pentateuco encontra-se a seguinte injunção

Escuta, ó Israel: Jeová, nosso Deus, é um só Jeová. 5 E tens de amar a Jeová, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de toda a tua força vital. 6 E estas palavras que hoje te ordeno têm de estar sobre o teu coração; 7 e tens de inculcá-las a teu filho, e tens de falar delas sentado na tua casa e andando pela estrada, e ao deitar-te e ao levantar-te. 8 E tens de atá-las como sinal na tua mão, e elas têm de servir de frontal entre os teus olhos; 9 e tens de escrevê-las sobre as ombreiras da tua casa e nos teus portões… 20 “Caso teu filho te pergunte num dia futuro, dizendo: ‘Que significam os testemunhos, e os regulamentos, e as decisões judiciais que Jeová, nosso Deus, vos ordenou?’ 21 então tens de dizer a teu filho: ‘Tornamo-nos escravos de Faraó, no Egito, mas Jeová passou a fazer-nos sair do Egito, com mão forte. 22 Por isso, Jeová estava pondo sinais e milagres, grandes e calamitosos, sobre o Egito, sobre Faraó e sobre todos os de sua casa, diante dos nossos olhos. 23 E ele nos fez sair de lá, a fim de nos trazer para cá, para dar-nos a terra que havia jurado aos nossos antepassados. [4] [grifo acrescentado]

Como explica Halbwachs, ‘esse é o processo pelo qual os judeus praticantes lembram e recuperam, na sua vida presente, os principais acontecimentos formativos na história da comunidade’ (HALBWACHS, 2011, p. 54).

De modo similar, muitos dos ritos observados entre as Testemunhas de Jeová indicam uma reconstrução de memória. Por exemplo, o rito que marca definitivamente a aceitação ou introdução de um membro na comunidade é o batismo por imersão. Sua realização é precedida por alguns requisitos. O postulante já deve ter se associado por algum tempo e recebido instrução formal, para conhecer razoavelmente bem as doutrinas principais. Também, sua conduta já deve estar em harmonia com sua postura ética, e ela já deve estar participando no trabalho de proselitismo regularmente. Mas o passo mais importante é explicado da seguinte maneira:

Quando nos dedicamos a Deus por meio de Cristo, expressamos a determinação de usar nossa vida para fazer a vontade divina conforme especificada nas Escrituras. Os batizandos, em símbolo desta dedicação, são imersos em água, assim como Jesus foi batizado no rio Jordão para simbolizar que se apresentava a Deus. (Mateus 3:13) É digno de nota que Jesus orou naquela importantíssima ocasião. — Lucas 3:21, 22. (TRATADOS, 2002, p. 10)

Tal batismo é um símbolo muito apropriado da dedicação. Ser mergulhada em água ilustra bem o fato de a pessoa morrer para com o seu proceder anterior. Ser erguida da água representa ser ela levantada para um novo modo de vida. Assim como a cerimônia de casamento ajuda a incutir nos noivos a sua condição de casados, a imersão em água diante de testemunhas provavelmente causará uma impressão duradoura no batizando. Não há dúvidas quanto a isto: Pelo ato de ser batizada, a dedicação da pessoa a Jeová deve ficar inapagavelmente gravada na memória como o evento mais importante de sua vida. Marca o momento decisivo em que se deixa de servir a si mesmo para servir a Jeová Deus. (TRATADOS, 1988, p. 14) [grifo acrescentado]


Performance

Sem dúvida a ação (ou performance) que o grupo considera a mais importante para a consolidação de sua memória e, consequentemente, identidade, é o trabalho de divulgação de suas doutrinas, chamado de trabalho de pregação. A rigor, consideram Testemunhas de Jeová àqueles que participam regularmente nessa obra – condição em que utilizam o prefixo “irmão” ao se dirigirem umas às outras. O termo em si já é uma referência histórica à origem espiritual comum que se atribuem e à igual responsabilidade no exercício do proselitismo. Sobre o papel desse trabalho na memória do grupo, lemos:

Ao pregarmos esta “‘palavra’ da fé”, ela fica cada vez mais gravada no nosso coração. Foi assim com Paulo, e suas palavras adicionais podem reforçar nossa determinação de ser como ele em compartilhar essa fé com outros: “Se declarares publicamente essa ‘palavra na tua própria boca’, que Jesus é Senhor, e no teu coração exerceres fé, que Deus o levantou dentre os mortos, serás salvo.” (Romanos 10:9) Essa confissão não é só feita perante outros por ocasião do batismo, mas tem de ser uma confissão contínua, um zeloso testemunho público a respeito de todos os aspectos grandiosos da verdade. Essa verdade enfoca o precioso nome do Soberano Senhor Jeová, nosso messiânico Rei e Resgatador, o Senhor Jesus Cristo, e as magníficas promessas do Reino. (TRATADOS, 1988, p. 18)

Sobre esse mesmo trabalho de divulgação, é perfeitamente possível fazer a afirmação reversa, ou seja, ela não só reforça a memória do grupo, como ela é consequência da memória do grupo. Ele só é possível graças à memória do grupo. Em outras palavras, esse trabalho evocado pela memória do grupo constitui a pedra fundamental de sua identidade e resulta na performance que o caracteriza. De fato, sua importância é tão capital que está na própria origem do nome do grupo: Testemunhas de Jeová, ou seja, em sua concepção, aqueles que dão testemunho sobre seu Deus.


Conclusão

Evidentemente esse ensaio não pretendeu esgotar um tema de tamanha envergadura, por tratar-se de um grupo complexo e de muitas particularidades. Entretanto é possível concluir que a constituição e preservação da memória são fundamentais para a consolidação da identidade e da performance do grupo.

 


 

Referências Bibliográficas

CONNERTON, P. Como as Sociedades Recordam. Oeiras: Celta Editora Lda, 1993. 126 p.

HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2011. 222 p.

POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 2, n. 3, 1989. 160.

POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 5, Outubro 1992. 200.

POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da Etnicidade. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998. 250 p.

PROUST, M. Em busca do tempo perdido: o tempo redescoberto. 15. ed. São Paulo: Editora Globo S.A, 2004. 304 p.

TRATADOS, S. T. D. V. D. B. E. A Confiança em Jeová Leva à Dedicação e ao Batismo. A Sentinela, Cesário Lange, 15 Março 1988. 32.

TRATADOS, S. T. D. V. D. B. E. Por que ser batizado? A Sentinela, Cesário Lange, 1 Abril 2002. 32.

TRATADOS, S. T. D. V. D. B. E. Aguarde com perseverança o dia de Jeová. A Sentinela, Cesário Lange, 15 Julho 2007. 32.

WEBER, M. Economia e sociedade. 4. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1998. 422 p.


[1] Páscoa

[2] Festa das Barracas

[3] Sorte, livramento

[4] Deuteronômio, capítulo 6

1Trabalho apresentado à disciplina Memória, Etnicidade e Performance, da Professora Dra. Teresinha Bernardo, como requisito parcial para a obtenção do título de doutorado em Ciências Sociais, sob a orientação da Professora Dra. Maria Helena Villas-Boas Concone.

© Marco A. Simões 2015