Religião: promotora e vítima do preconceito1

“Odiamos algumas pessoas porque não as conhecemos; e não as conheceremos porque as odiamos.”  Charles Caleb Colton (1780?-1832)


A relação entre religião e preconceito é paradoxal e complexa. Em seu livro The Nature of Prejudice (A Natureza do Preconceito), Gordon W. Allport declara que, “em geral, membros de igrejas parecem ser mais preconceituosos do que a média; eles também são menos preconceituosos que a média.” [1] De fato, é possível afirmar que, historicamente, a religião tem sido tanto uma força propulsora do preconceito (quer no sentido de praticá-lo que no sentido de ser vítima), como também uma força restritiva a ele.

Por exemplo, retomemos algumas declarações encontradas nos escritos sagrados fundamentais de três das maiores comunidade religiosas da História, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo. Estes escritos estão reunidos nas escrituras hebraicas da Bíblia, chamados pelos cristãos de Velho Testamento. Várias dessas declarações, ou mandamentos, tratam especificamente do relacionamento dos judeus com os chamados “residentes forasteiros”, estrangeiros que viviam em Israel, e que, normalmente, adotavam suas práticas religiosas.

Em geral, os judeus tinham a orientação de tratá-los com justiça e bondade. A Lei estipulava que  “caso um residente forasteiro resida contigo no vosso país, não deveis maltratá-lo. O residente forasteiro que reside convosco deve tornar-se para vós como o vosso natural; e tens de amá-lo como a ti mesmo, pois vos tornastes residentes forasteiros na terra do Egito. Eu sou Jeová, vosso Deus.” (Levítico 19:33, 34)[2].

Entretanto, sempre que houvesse a possibilidade de uma incorporação dos costumes religiosos estrangeiros nos costumes dos judeus, uma rígida separação era imposta. Por exemplo, na questão do casamento a orientação era clara: E não deves formar com elas nenhuma aliança matrimonial. Não deves dar tua filha ao seu filho e não deves tomar sua filha para teu filho. Pois, ele desviará teu filho de seguir-me e certamente servirão a outros deuses; e a ira de Jeová deveras se acenderá contra vós e ele certamente te aniquilará depressa. (Deuteronônio 7:3). E há que se notar que, se o risco de “contaminação” dos costumes judeus pelos dos outros povos fosse considerado grande, as medidas eram mais severas, e incluíam a ordem de exterminação desses povos. “E tens de consumir todos os povos que Jeová, teu Deus, te dá. Teu olho não deve ter dó deles; e não deves servir aos seus deuses, pois isso te será por laço.(Deuteronômio 7:16).

Vale ressaltar, porém que, o alvo do extermínio não era o povo em si, pelo fato de serem estrangeiros ou de outra raça. Como mencionado, os estrangeiros prosélitos eram bem-vindos e recebiam forte amparo legal. O objetivo intrínseco era coibir a outra forma de adoração. Tanto assim o é, que encontramos a seguinte lei, referindo-se agora aos próprios judeus:

“Caso ouças dizer numa das tuas cidades que Jeová, teu Deus, te dá para ali morares:‘Homens imprestáveis saíram do teu meio para tentar desviar os habitantes da sua cidade, dizendo: “Vamos e sirvamos a outros deuses”, que não conheceste’, então tens de pesquisar, e investigar, e indagar cabalmente; e se a coisa fica estabelecida como verdadeira, tal coisa detestável foi feita no teu meio, deves impreterivelmente golpear os habitantes daquela cidade com o fio da espada. ... Devota à destruição pelo fio da espada tanto a ela como a tudo o que houver nela.” (Deuteronômio 13:15-18) Grifo acrescentado.

À luz dessa comparação, a preocupação era muito mais com a pureza da religião do que com o racismo, conforme declara Castoriadis.[3] Novamente, muito embora esse distanciamento religioso fosse imposto, encontramos em Provérbios 6:30 a declaração de que entre as coisas odiadas por Deus estava “aquele que cria contendas entre irmãos”.

Essa atitude de repúdio a outras formas de religião naturalmente resultou numa forte reserva em relação aos estrangeiros. De fato, esta postura permeou fortemente aos cristãos do primeiro século. Por exemplo, Castoriadis [4] lembra-nos da história do centurião romano de nome Cornélio, que vivia em Cesaréia. O relato apostólico dá conta de que este homem era “homem devoto e que temia a Deus, junto com toda a sua família, e ele fazia muitas dádivas de misericórdia ao povo e fazia continuamente súplica a Deus”. Em vista de sua atitude piedosa, por orientação divina, o apóstolo Pedro é orientado a visitá-lo para evangelizar a Cornélio e sua família. Para preparar o apóstolo (já que seria uma ação incomum um judeu visitar um gentio), segundo o relato, ele recebe uma visão na qual lhe é oferecido um banquete preparado com animais impróprios para consumo segundo a lei dos judeus, o qual ele rejeita veementemente “porque nunca comi nada aviltado e impuro”. Entretanto, Pedro recebe a seguinte resposta: “Pára de chamar de aviltadas as coisas que Deus purificou.” Ele compreenderia que esta visão se relacionava com a visita que faria à casa de Cornélio, tanto que, ao apresentar-se à família gentia esclarece: “Vós bem sabeis quão ilícito é para um judeu juntar-se ou chegar-se a um homem de outra raça; contudo, Deus mostrou-me que eu não chamasse nenhum homem de aviltado ou impuro. Por isso vim, realmente sem objeção, quando fui chamado.” (Atos dos Apóstolos 10-11)

Vale ressaltar que a reserva de Pedro tinha fundamentos muito mais nos costumes dos judeus do que nas ações e palavras do fundador do cristianismo. Segundo o relato evangélico, não foram poucas as ocasiões em que Jesus Cristo atuou de forma incomum para um judeu, por exemplo, aceitando um banquete oferecido por um cobrador de impostos, classe fortemente repudiada pelos judeus, falando em público com prostitutas e leprosos (que eram mantidos isolados) e curando pessoas de outras raças (fenícios e romanos). Numa dessas ocasiões, ao tomar a iniciativa de falar com uma mulher samaritana, ela mesma estranhou, pois, conforme o relato “a mulher samaritana disse-lhe: “Como é que tu, apesar de ser judeu, me pedes de beber, quando eu sou mulher samaritana?” (Porque os judeus não têm tratos com os samaritanos.)” (João 4:9).

Apesar disso, a decisão de Pedro teve um profundo impacto na história inicial do cristianismo, pois que ele recebeu amargas críticas de muitos co-religiosos, a ponto de fazê-lo apartar-se dos cristãos gentios, numa ocasião futura (atitude da qual ele se retrataria posteriormente). Com o tempo, e particularmente graças ao trabalho de evangelização do apóstolo Paulo entre os não-judeus na Ásia Menor, Grécia e Roma, os cristãos judeus e gentios passaram a conviver em considerável harmonia, a ponto de, como grupo, passarem a ser alvo de intenso preconceito e perseguição, independentemente de sua ascendência.

As causas dessas perseguições mereceriam uma abordagem mais extensa, mas, em suma, assim como os judeus, os cristãos constituíam sob muitos aspectos um grupo “diferente”. Eram monoteístas, numa sociedade politeísta. Não prestavam adoração ao imperador, e mantinham princípios de castidade e renúncia à violência. Embora não sendo de uma raça diferente, é possível remeter-nos à afirmação de Pierucci, de que “o racismo não é primeiro rejeição da diferença, mas obsessão com a diferença, seja ela constatável, ou apenas suposta, imaginável ou atribuída.”[5] É interessante apontar aqui, também, a declaração de Bauman, que, parodiando Tolstói, diz “todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos, e os produz de sua própria maneira, inimitável.”[6]

Assim, os cristãos no primeiro e segundo séculos foram ‘produzidos como estranhos’ vítimas de todas as formas de preconceito preconizadas por Allport[7]:

1.      Linguagem abusiva

2.      Segregação

3.      Discriminação legalizada

4.      Violência contra pessoas e propriedades

5.      Genocídio

Não obstante, essa posição com o tempo inverteu-se, e, ao ganhar poder a Igreja, assim como as outras grandes comunidades religiosas, passou de discriminada a discriminadora. Exemplos históricos não faltariam, com as Cruzadas, a Inquisão, e exemplos modernos, como o dos clérigos, que instigaram o anti-semitismo e as guerras durante séculos. Segundo o livro História do Cristianismo, Hitler disse certa vez: “Quanto aos judeus, só estou executando a mesma política que a Igreja Católica vem adotando há mil e quinhentos anos.” [8]   Durante as atrocidades nos Bálcãs, os ensinos ortodoxo e católico pareciam incapazes de produzir tolerância e respeito para com pessoas que professavam ter outra religião.

 Da mesma forma, em Ruanda, religiosos assassinaram correligionários. O jornal National Catholic Reporter declarou que o conflito representava “um verdadeiro genocídio, pelo qual, lamentavelmente, até mesmo os católicos são responsáveis”. A própria Igreja Católica reconheceu seu histórico de intolerância. Em 2000, o Papa João Paulo II pediu perdão pelos “desvios do passado” numa missa pública em Roma. Foram citadas especificamente, na cerimônia, coisas como “intolerância religiosa contra judeus, mulheres, indígenas, imigrantes, pobres e nascituros”. Facilmente se poderia encontrar exemplos entre protestantes, hindus, islâmicos, etc. Várias ações terroristas atuais têm sua origem no preconceito religioso.

Dada a complexidade do tema, muito mais poderia se considerar, especialmente porque o preconceito não parece diminuir com o tempo. O prof. Pierucci, ao comparar suas pesquisas sobre o tema, realizadas em São Paulo, em 1980, declarou-se “boquiaberto em face de tamanha e tão nítida semelhança entre os conservadores britânicos do final dos anos 1940 e os ativistas eleitorais de direita por mim pesquisados na São Paulo da segunda metade dos anos 80.”[9]

A conclusão dessa análise introdutória não pode ser outra a não ser de que o preconceito está enraizado de tal forma na sociedade, que ele transcende ao tempo e ao espaço geográfico. É possível perceber que, através da história, as religiões, assim como outros grupos, simplesmente valeram-se do que lhes pareceu mais adequado em seu contexto: quer justificar e promover o preconceito religioso, quer lutar contra ele.


[1] ALLPORT, Gordon. The Nature of Prejudice. EUA:Doubleday, 1958, pg. 444, tradução livre.

[2] Em todos os casos foi utilizada a Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, publicada Watchtower Tract and Bible Society, EUA.

[3] CASTORIADIS, Cornelius. Reflexões Sobre o Racismo. São Paulo: Paz e Terra, 1992, pg. 30

[4] CASTORIADIS, Cornelius. Op. cit, pg. 28

[5] PIERUCCI, Antonio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34. Pg. 26

[6] BAUMAN, Zigmunt. O Mal-estar da pós modernidade. Rio de Janeiro: Jahar. Pg. 26

[7] ALLPORT, Gordon. Op. cit. Pg. 49

[8] CONWAY, John. S. The Nazi Persecution of the Churches. Canadá: Regent College Publishing, 2001., pg. 26

[9] PIERUCCI, Antônio Flávio. Op. cit. Pg. 16

1 Trabalho apresentado à Atividade Programada Sociologia e Alteridade, ministrada pela Professora Dra. Maura Pardini Bicudo Veras, como requisito parcial para a obtenção do título de doutorado em Ciências Sociais, sob a orientação da Professora Dra. Maria Helena Villas-Boas Concone.

© Marco A. Simões 2015