Dada a importância do tema religião a essa pesquisa, convém retomar brevemente alguns dos conceitos fundamentais, conforme enunciados pelas principais fontes inspiradoras das teorias sociológicas, a saber, Durkheim, Marx e Engels, e Weber. Todos eles dedicaram considerável empenho em analisar a religião como fenômeno social, ainda que sob diferentes pontos de vista. Em vista do alcance do tema e do volume dos estudos que eles publicaram a respeito, o objetivo aqui é tão somente sumarizar algumas das noções relevantes apresentadas por esses estudiosos, com vistas ao aprofundamento da pesquisa.
Emile Durkheim (1858-1917)

A Emile Durkheim, mais do que a qualquer outro, se atribui o título de fundador da Sociologia, materializado com sua nomeação como ou primeiro titular da recém criada cadeira de Sociologia na Universidade de Sorbonne. Lá, em especial a partir de 1897 com o lançamento da revista L’Année Sociologique, ele inaugurou um expressivo movimento de intercâmbio e pesquisas, que continua sendo fonte de estudos. É verdade que o projeto da escola durkheimiana de fazer da sociologia uma ciência, com um método regrado e um tratamento dos fatos sociais como “coisas”, foi e tem sido alvo de críticas. Por outro lado, porém, é possível verificar que seu estudo da natureza da ligação social e da dialética indivíduo-sociedade permanecem extremamente atuais e relevantes. Assim também o é sua análise da religião como um “fato social”, pois ele atribui a ela grande relevância, conforme será delineado sumariamente nesse trabalho.
Muito embora oriundo de uma família de longa tradição rabínica, cedo Durkheim proclamou-se agnóstico, racionalista e ateu, e vivenciou o humanismo francês do final do século XIX como um judeu secularizado. Essa postura leiga, entretanto, não fez com que ele deixasse de considerar a religião com um fator essencial para a compreensão das relações entre o indivíduo e a sociedade. De modo mais ou menos explícito, ela é contemplada em suas 4 obras principais: A divisão do trabalho social, Regras do método sociológico, O suicídio e As formas elementares da vida religiosa.
Já desde o início de seu trabalho, particularmente em A divisão do trabalho social, Durkheim associa a coesão social à obrigação moral que se inscreve nas “regras que presidem às relações dos homens que formam a sociedade” (DURKHEIM, 1967). Nessa linha, ele contrapõe a solidariedade mecânica das sociedades mais primitivas, marcadas pela predominância da consciência coletiva sobre o indivíduo, à solidariedade orgânica, na qual o que se impõe é a complementaridade dos indivíduos e grupos, ao realizarem tarefas específicas e diferenciadas, que, somadas, resultam no bem da coletividade. Se, na primeira, a sociedade é regida por um direito repressivo, na segunda a sociedade trata de se autorregular, moldando os comportamentos e reparando eventuais perturbações introduzidas por indivíduos. Assim, para Durkheim, é evidente a importância das obrigações morais como vínculo primário das ligações sociais.
Esse conceito é claramente explicitado por ele nas Regras do método sociológico, onde ele afirma que quando cumprimos nosso dever de cidadãos, maridos ou pais, cumprimos deveres definidos fora de nós mesmos. Assim, muito embora eles possam encontrar correspondência às nossas inclinações, eles tiveram sua origem fora de nós. “Do mesmo modo, diz ele, as crenças e as práticas de sua vida religiosa, o fiel as encontrou ao nascer; se elas existiram antes dele, é porque existem fora dele” (DURKHEIM, 2001). Isso não deve, entretanto, conduzir a uma compreensão reducionista, na qual Durkheim atribuiria uma causa determinística ao comportamento moral do indivíduo. Para ele, o sentimento de obrigação também se alimenta da ligação afetiva do indivíduo ao grupo social, indivíduo esse que possui a capacidade autônoma de obrigar-se a si mesmo, a fim de preservar os interesses do grupo.
Tomando-se, portanto, essa preocupação com a natureza da ligação social e com as forças de coesão social como o fio condutor da obra de Durkheim, não é difícil concluir que a religião é, para ele, uma grande protagonista. É nela, com efeito, que ele encontra a primeira manifestação desse espírito comum que faz a sociedade manter-se reunida. Sua definição de religião explicita esse papel, pois, para ele, a religião é “antes de tudo um conjunto de ideias, de crenças de sentimentos de todos os tipos que se realizam por meio dos indivíduos e, na primeira fila dessas ideias, encontra-se o ideal moral, que é sua principal razão de ser” (DURKHEIM, 1970, p. 79). Assim, ao estudar a religião, estamos remontando às fontes das ligações sociais.
Durkheim, no entanto, aprofundará essa visão inicial, e um tanto formal, de religião. Especialmente em sua obra de 1912, Forças elementares na vida religiosa, ele rejeita a ideia de definir o fato religioso a partir da prática da religião (ou culto). É necessário ir mais à essência, à origem social do sentimento religioso, que, certamente, deve transcender a uma simples série de rituais estabelecidos por regras ou tradições. E é na busca dessa essência, ou seja, da noção do “sagrado”, que prossegue a investigação de Durkheim, e que culminou nas propostas de sua obra mencionada[1]. Nela, ele oferece uma suma teórica de sua compreensão da religião.
Inicialmente, Durkheim argumenta que a religião atual vestiu-se de tal modo de rituais e cerimônias, que nelas é difícil encontrar a noção essencial de sagrado. Por isso, essa noção é mais clara nas formas mais elementares da religião. Nelas, seria mais fácil caracterizar dois fenômenos, para ele, fundamentais: as crenças e os ritos. As crenças são de natureza subjetiva e referem-se às virtudes e poderes das coisas consideradas sagradas. São elas que classificam as coisas reais ou ideais em profanas ou sagradas. Por sua vez, os ritos são as regras que prescrevem como o homem deve portar-se diante das crenças. Essas regras têm o propósito de afastá-lo do profano e aproximá-lo do sagrado. Vale ressaltar que Durkheim distingue claramente religião de magia. Ele argumenta que a diferença entre as duas está no seu poder de coesão. A religião (ou seja, a soma de crença mais rito) produz elementos comuns a uma coletividade e exercem nela um poder agregador, ao passo que as crenças mágicas não têm o efeito de ligar uns aos outros os homens que aderem ou fazem uso dela.
Porém se, portanto, as crenças mágicas são rejeitadas como elemento originador da religião, Durkheim busca propor sua origem efetiva. As explicações animistas e naturalistas, para ele, são reducionistas demais. Como ele diz “uma vez que nem o homem nem a natureza têm, por si mesmos, um caráter sagrado, isso se deve ao fato de que eles o têm em outra fonte. [...] Em outras palavras, para além do que chamamos naturalismo e animismo, deve haver outro culto, mais fundamental e mais primitivo, do qual os primeiros são provavelmente apenas formas derivadas ou aspectos particulares” (DURKHEIM, 1912, p. 124). Uma interpretação assim puramente racional da religião comprometeria a compreensão de sua essência, ou de sua “verdade”.
Para evitar essa análise simplista e, assim, questionável, Durkheim, buscando seguir seu próprio método sociológico, entende encontrar nos cultos totêmicos australianos o caráter elementar e singelo que o conduzem a identificar alguns elementos essenciais da religiosidade. Ele verifica que o totem não é um ídolo no sentido comum. Não representa uma pessoa, coisa ou animal. Ele representa seu clã, e molda o comportamento de seus membros. Em outras palavras, o totem é a própria sociedade do clã, à qual seus membros prestam culto e de acordo com a qual se comportam. Quando as ações sociais presentes em uma sociedade atingem um “grau suficiente de intensidade partilhada, essa comunhão de consciência suscita o espírito religioso, fixando-o sobre coisas e seres que supomos serem portadores do poder gerador do sentimento comum. Eles são, então, reconhecidos como sagrados” (DURKHEIM, 1912, p. 307). Assim, em última análise, a realidade na qual se baseia o sentimento do sagrado é a própria sociedade, e é dela que emana sua força.
Como, porém, garantir a perenidade dessa força? Para Durkheim, essa é a função dos ritos. Ele postula que a estruturação do fenômeno religioso se dá em dois patamares. O patamar primário é de natureza pessoal, e é onde se dá o contato individual com o sagrado. Já no patamar secundário é onde essa experiência é racionalizada e compartilhada. Esse patamar, que são os ritos e cultos, é o responsável por tornar a experiência religiosa, que é de foro íntimo e efêmero, numa realidade universal, transmissível, e, finalmente, perene.
Essa estrutura faz com que “não exista sociedade sem religião, nem sem o equivalente de uma religião” (DESROCHE, 1973) apud (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 199). Muito embora pareça haver na modernidade uma crescente exclusão da religião, Durkheim aponta que esse movimento sempre existiu – na queda do politeísmo greco-romano, na queda das teocracias orientais, na Escolástica, reforma, iluminismo, etc. Não obstante, a religião sempre encontrou formas de se manter presente e influente.
Portanto, apesar dessa constante relativização da religião instituída, a dimensão religiosa é inerente à própria sociedade, e é irredutível.
Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895)

“A religião é o ópio do povo”, talvez seja uma das máximas mais conhecidas de Karl Marx[2]. Essa declaração consta em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1844. Nela, Marx explica que, sendo a crítica à religião propriamente já bastante conhecida, buscava ele analisar porque a sociedade produz e mantém a ilusão e a letargia religiosa. Ou seja, sua posição é diferente das que emanam de uma posição filosófica antirreligiosa. Sua abordagem não tem como foco primário criticar a expressão religiosa em si, mas sim criticá-la como fenômeno social.
Karl Marx nasceu num ambiente judaico secularizado. Apesar dos antecedentes rabínicos, a família converteu-se ao protestantismo para favorecer a ascensão profissional. Por razões políticas Marx foi expulso ou teve que fugir várias vezes dos países onde esteve, de modo que nunca assumiu uma cátedra na universidade, tendo sido ajudado financeiramente por seu amigo e colaborador Engels, empresário de posses que conheceu em Paris em 1844. Esse último sim recebeu uma formação religiosa bastante ortodoxa na infância, o que chegou a representar para ele um certo desconforto ao envolver-se com convicções racionais, mas acabou por perder as convicções religiosas.

Apesar dessas posições pessoais, e do desinteresse pela religião enquanto conteúdo, as propostas de Marx e Engels colocam a religião no centro do debate. Os três pilares elaborados por eles para a análise do capitalismo estruturam também sua abordagem da religião, a saber, a alienação religiosa que obscurece a percepção da realidade social, a legitimação da dominação religiosa, muitas vezes exercida de modo incompatível ao seu suposto propósito e o conflito de classes, manifesto de muitos modos no cenário religioso.
É nessa abordagem que se insere a metáfora da religião como “ópio do povo”, da qual decorre uma das militâncias de Marx de “libertar as consciências da obsessão religiosas”, o que aconteceria “quando as condições de trabalho e da vida prática apresentarem ao homem relações transparentes e racionais com seus semelhantes e com a natureza”. Para Marx, toda a mensagem religiosa favorecia a burguesia. De fato, na Gazeta alemã de Bruxelas, num texto bastante polêmico, ele coloca sobre os ombros da religião a responsabilidade de alimentar práticas como a escravidão, a diferença de classes, a submissão covarde, o aviltamento e a servilidade (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 23). E no contexto específico dos problemas sociais, particularmente da questão operária do Século XIX, é possível encontrar um caminho para se avaliar essas críticas. A orientação religiosa, em grande medida, apontava para “a lei divina da desigualdade natural”, e para “não colocar na terra suas buscas e apegos”, numa mensagem claramente favorável às classes dominantes, na ótica marxista. Para ele, o fato é que as religiões existem para manter a dominação, e não que o homem é dominado por ser religioso (MARCONDES, 2010, p. 235).
Não obstante essa posição clara e antagônica do marxismo à religião, é possível identificar nele também elementos de análise da importância sociológica do fato religioso. Por exemplo, em Ideologia alemã, Marx e Engels atribuem as representações, o pensamento, e portanto, a religião, ao comportamento material do homem. “São os homens que são os produtores de suas representações, de suas ideias, etc., mas os homens reais, que agem, tais como são condicionados por um determinado de suas forças produtivas e das relações que a elas correspondem, nisso compreendendo as formas mais amplas que essas possam assumir” (MARX; ENGELS, 1973). Ou seja, a religião é uma construção ideológica do homem, à qual ele se subordina como se ela fosse algo anterior, externo e superior. Essa ideologia afeta, sem dúvida, os movimentos sociais, embora, para Marx e Engels, as condições econômicas é que ainda são finalmente as determinantes.
Esse ponto de vista tem como base a visão marxista da representação da sociedade. Nela, a sociedade é uma construção de diferentes níveis, mas que se assenta sobre uma fundação constituída pelos setores de produção material. Desse modo, ainda que as instituições e as ideologias (entre elas a religião institucionalizada e a religiosidade individual) atuem sobre a estrutura de base da produção material, esta última é, em última instância, o fator determinante da solidez do conjunto estrutural. Para Marx, historicamente não foram as forças religiosas que ocasionaram mudanças. Ao contrário, as condições econômicas por vezes se valeram da religião para provocá-las.
Como exemplo dessa afirmação, Engels nota que o luteranismo foi a “religião da qual a monarquia absoluta precisamente necessitava”. E, “o dogma calvinista respondia às necessidades da burguesia mais avançada de sua época. Sua doutrina da predestinação era a expressão religiosa do fato de que, no mundo comercial da concorrência, o sucesso e o insucesso não dependem nem da atividade nem da habilidade do homem, mas de circunstâncias independentes a seu controle” (ENGELS, 1968, p. 125). Dessa forma, a religião serviria simplesmente aos interesses da classe dominante.
Essa visão da religião a leva, portanto, à questão da dominação e à luta de classes, pois, conforme escrevem Marx e Engels em Ideologia alemã, “os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes. Ou seja, a classe dominante materialmente, também o é ideologicamente.” Assim, Engels vai afirmar que “mesmo naquilo que chamamos de guerras de religiões do século XVI, tratar-se-ia, antes de tudo, de interesses de classes”. Por conta dessa íntima relação entre classes sociais e expressões religiosas, Engels salientou o fato de que as lutas sociais ou prevalecem ou se valem das lutas religiosas, pois as expressões religiosas não escapam das determinações sociais.
Nessa linha raciocínio, portanto, se forem eliminadas as diferenças sociais, a religião perderia seu propósito e estaria fadada ao desaparecimento. Esta linha é paralela ao prognóstico de ambos para o capitalismo: as contradições deste se exacerbariam a tal ponto que a luta de classes traria o proletariado para o controle dos meios de produção, impondo uma sociedade sem classes. E sem religião.
Max Weber (1864-1920)

‘Não tenho necessidade ou capacidade de erigir em mim um edifício espiritual qualquer. Porém, não sou antirreligioso ou irreligioso’ (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 74), declarou Weber em carta ao pastor Friedrich Naumann em 1909[3]. De fato, fazendo uso de um deliberado agnosticismo metodológico, Weber manifesta em sua obra profundo interesse pelo fenômeno religioso. Assim como na política, no qual a intelectualidade se sobrepõe à militância, (FREUND, 1990) ele se manteve independente na religião, podendo ser considerado um protestante sem igreja. Manteve, porém, numerosas relações amigáveis com teólogos e pastores, e publicou vários estudos a respeito da religião, sendo o mais famoso o “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, publicado em 1905 após uma viagem feita aos Estados Unidos, revisto e ampliado na edição de 1920, obra considerada uma das mais importantes do Século XX. Em 1906 publicou um ensaio “Igrejas e seitas” sobre a religião norte americana, e chegou a colaborar na revista protestante liberal O mundo cristão, do teólogo Martin Rade.
Talvez sua formação familiar tenha contribuído para essa postura de contraste. Sua mãe, mulher de grande cultura, era de origem protestante huguenote e religiosa praticante, ao passo que o pai pertencia à burguesia afortunada e fez carreira como deputado, manifestando pouco interesse pela religião. Sua formação acadêmica também foi bastante diversificada, passando por direito, história, economia política, filosofia e teologia.
Para Weber, a compreensão sociológica deveria tornar as condutas dos homens inteligíveis num projeto de conhecimento intelectual e racional, que não renunciasse à explicação causal. Para tanto, ele propunha o princípio metodológico da neutralidade axiológica que o permitiria “salvaguardar a legitimidade da pesquisa científica em sua ordem e a das avaliações práticas dela, ou seja, a da luta e do compromisso” (FREUND, 1990, p. 55), apud (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 79). Sua definição de sociologia ilustra essa busca, pois, para ele, a sociologia deve ser uma “ciência que se propõe a compreender por interpretação a atividade social e, por meio disso, explicar causalmente seu desenvolvimento e seus efeitos” (WEBER, 1998, p. 4).
Muito diferente da visão marxista, Weber não atribui a uma causa única o fator explicativo da conduta histórica, presente ou futura, da humanidade. Embora concedendo ao elemento econômico um peso relevante, ele valoriza compreender o sentido que os homens dão à sua ação, e as razões (e não ‘a razão’) que os impelem a adotar um ou outro caminho. Para facilitar essa abordagem, ele lança mão do conceito do “ideal-tipo”, obtido enfatizando uma ou mais características de modo a formar um quadro homogêneo que represente claramente um “tipo”[4]. Ele deixa claro, porém, que se trata de uma construção, uma utopia, um conceito, e o trabalho da pesquisa é delinear esse ideal-tipo e estabelecer em que medida ele se aproxima ou afasta da realidade, e tem sua conduta afetada pelas causas mencionadas (WEBER, 1999).
No âmbito metodológico ainda, e no que concerne às forças motivadores, Weber estabelece uma clara distinção entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção (WEBER, 1999). O motivo é que nem sempre os resultados de uma ação correspondem às intenções que a geraram. Uma boa intenção, isto é, uma intenção “ética”, pode ter uma consequência desastrosa, e uma ação impensada, ou “não-ética”, pode ter um resultado benéfico. Então, a ética da responsabilidade é aquela que leva em conta as consequências de uma ação, que levaria alguém a não realizar um ato “ético” se suas consequências não forem positivas. Por outro lado, a ética da convicção considera apenas o ato em si, independente de suas consequência. Com base nela, o indivíduo agirá conforme suas convicções pessoais, independentemente das consequências de sua ação.
Fazendo uso de sua metodologia, Weber, inicialmente, define a religião como uma espécie particular de modo de agir em comunidade. Para ele as religiões “são sistemas de regulamentação da vida, que souberam reunir em torno de si massas particularmente importantes de fiéis” (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009). Ademais, e diferente de outras abordagens, as religiões têm muito mais que ver com o mundo ‘cá embaixo’ do que com o ‘além’. “Os bens de salvação propostos por todas as religiões, primitivas ou civilizadas, proféticas ou não, relacionam-se em primeiro lugar, com muito peso, a este mundo presente” (WEBER, 1998, p. 59). Por isso, não surpreende que Weber tenha dado muita atenção às formas de dominação religiosa, pois, segundo ele não é a natureza dos bens espirituais que constitui a característica determinante do conceito de agrupamento hierocrático, mas o fato de que a dispensação desses bens pode constituir o fundamento de uma dominação espiritual sobre os homens. Isto é, aqueles que supostamente têm a capacidade ou direito de dispensar os bens espirituais exerceriam domínio sobre os que desejam tais bens.
Esse raciocínio vai ao encontro de sua conceituação dos “tipos puros de dominação legítima”. Weber postula que são três as formas de dominação. Inicialmente há a dominação legal, na qual a autoridade é estatuída de forma burocrática, em seu estado mais puro. Nela “a associação é eleita ou nomeada, e ela própria e todas as suas partes são empresas”. Embora a descrição é dirigida primariamente à estrutura moderna do Estado, é possível verificar que o mesmo tipo de dominação é exercido pela religião institucionalizada. A seguir, a dominação tradicional é facilmente identificável no meio religioso, pois que ela é oriunda da “crença na santidade das ordenações e dos poderes senhoriais de há muito existentes”. Finalmente, a dominação carismática talvez seja a mais imediatamente ligada à religião, já que emana da “devoção afetiva à pessoa do senhor e seus dotes naturais (carisma) e, particularmente: a faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória” (FERNANDES, 2010, p. 128-134).
Como resultado previsível dessa dominação, no campo político a religião não permaneceria isenta de tensões, já que a religiosidade “longe de ser indiferente ao político, pode também ter consequências revolucionárias, principalmente quando a rejeição radical do mundo, manifestada pelo místico, desemboca sobre uma desvalorização total da ordem secular, em favor de ‘uma aparição iminente da era de fraternidade cósmica’” (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 94). Ao fazer essa análise da dominação religiosa, ele agregou um estudo muito detalhado dos vários papéis presentes nas comunidades religiosas, seja elas igrejas ou seita, entre as quais ele estabelece uma nítida diferença, papéis esses que incluem o fundador, o profeta, o sacerdote, o religioso, entre outros.
Além do político, um outro campo de tensão para Weber, seria o econômico. Para ele haveria, em algum momento, uma tensão causada pela incompatibilidade do preceito ético da caridade e da rejeição econômica do mundo, com o fato frisado por ele de que as relações comerciais monetárias resistem à intervenção normativa de uma ética religiosa. Nesse ponto, Weber concorda com Marx, que denunciou o fetichismo da mercadoria e a redução da dignidade pessoal a valor de troca como influências mais poderosas que a religião. Weber aponta como exemplo a piedade calvinista puritana, que valorizou religiosamente a atividade econômica e o sucesso material, numa lógica que dissolveria as motivações originais de sua formação. Nessa lógica, o sucesso material seria evidência da aprovação divina.
Essa tensão entre a atividade econômica e a religiosa é abordada de modo compreensivo em uma de suas obras máximas, A ética protestante e o espírito do capitalismo. Nela Weber analisa extensivamente a Reforma protestante, que ele caracteriza como uma outra forma de dominação religiosa, cujo objetivo seria exercer um controle muito mais estreito da conduta individual, no que ele chamou de “uma regulamentação de toda a conduta da vida” (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 115). A razão dessa ênfase à vida de agora, e não a do além, é que a Reforma não apresenta mais a perfeição espiritual como resultado do ascetismo monástico, mas a relaciona diretamente com valores do mundo, quais sejam, os deveres sociais, notadamente o trabalho. De fato, demonstrar má vontade no trabalho era considerado no luteranismo como “o sintoma de uma falta de estado de graça”. O oposto, portanto, deve ser verdadeiro: o êxito material representaria a aprovação e apoio divinos, o que justificaria o empenho dos fiéis por patrimônios materiais. Com efeito, o sucesso econômico dos calvinistas holandeses, dos empreendedores protestantes norte-americanos, e dos pentecostais modernos apontam, na linha sociológica de Weber, que a motivação religiosa pode estar em afinidade com o ética do empreendedorismo capitalista. Sua conclusão é que a ética religiosa, especialmente a protestante, baseia-se mais em sua lógica particular do que sobre motivos pios.
Há que se notar que Weber faz uma clara distinção entre o catolicismo e o protestantismo no que toca à atitude em relação ao espírito capitalista. Ao catolicismo ele atribui um papel muito menos expressivo quanto à absorção desse espírito, quanto não antagônico a ele. Sua análise é que:
“As pessoas imbuídas do espírito do capitalismo tendem, hoje, a ser indiferentes, se não hostis, à Igreja. A ideia de beata monotonia do paraíso exerce pouca atração sobre sua natureza ativa; a religião se lhes apresenta como um meio para afastar as pessoas do trabalho neste mundo. Se lhes perguntarmos qual o significado de sua atividade sem descanso, porque nunca estão satisfeitos com o que têm, parecendo não fazer sentido de qualquer ponto de vista puramente mundano, talvez nos deem uma resposta, se tiverem uma: para garantir o futuro a meus filhos e meus netos... Com muito mais frequência, uma vez que tais motivos não lhes são peculiares, mas seriam igualmente efetivos para os tradicionalistas e, mais corretamente, a resposta seria tão só: o negócio, com o seu incessante trabalho, tornou-se uma parte necessária de suas vidas. E essa seria de fato a única motivação possível, mas ao mesmo tempo nos diz que, do ponto de vista da felicidade pessoal, parece tão irracional este tipo de vida na qual o homem existe para o seu negócio, quando deveria ser o contrário.” (WEBER, 2004, p. 66)
Quanto ao protestantismo, por outro lado, em A ética protestante e o espírito do capitalismo, na parte I, capítulo 2, Weber busca definir o “espírito” do capitalismo com nada menos do que o sermão de Benjamin Franklin, no qual “todas as advertências morais são de cunho utilitário” (WEBER, 2004, p. 42). A partir dessa definição ele vai então demonstrar que o protestantismo, em suas principais derivações, a saber, o calvinismo, o pietismo, o metodismo e as seitas anabatistas, irão, em maior ou menor grau, repetir esse discurso, ainda que com outras roupagens (WEBER, 2004, p. 87-139).
Assim como no campo econômico e no campo político, Weber também discute as tensões entre a religião e a estética e o amor sexual. Entretanto, segundo ele, é no campo do intelecto que surgem as maiores tensões. Historicamente, religião e ciência atuaram sempre em campos opostos. Weber explica que “em todo lugar em que o conhecimento racionalmente empírico realizou de modo sistemático o desencantamento do mundo e sua transformação em um mecanismo causal, aparece definitivamente a tensão com as pretensões do postulado ético, segundo o qual o mundo estaria orientado, de um ou de outro modo, em torno de um sentido ético” (WEBER, 1996, p. 448) apud (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 96). Em outras palavras, para Weber, a racionalização científica alimenta a irracionalidade religiosa. Ainda que tenha havido esforços para intelectualizar a religião, Weber aponta para o fato de que, num confronto derradeiro, ela sempre lançará mão do “carisma de uma iluminação”, que será usado, por sua vez, para autorizar seu poder econômico e político.
Não obstante, essa secularização (ou desmagificação) do mundo não significa para Weber que a religião deva perder seu lugar de identidade com o mundo suprassensível. De fato, a secularização apenas alterou a forma do poder social da religião, aumentando a autonomia do homem para com a religião, sem minimizar seu papel como direcionador de conduta. Assim, Weber aponta que os caminhos razoáveis num mundo desencantado possam ser encontrados entre a ética do valor e a ética da responsabilidade, com seus elementos constitutivos proporcionados pelos valores seculares somados aos religiosos (MARCONDES, 2010).
[1] Vale notar que outros trabalhos publicados antes da obra de Durkheim visaram esse objetivo, notadamente de Henri Hupert (1872-1927) e Marcel Mauss (1872-1950), ambos membros da L'Année Sociologique, fundada por Durkheim.
[2] Embora não seja dele originalmente. Moses Hess (1812-1875), Heinrich Heine (1797-1856) e Immanuel Kant já haviam utilizado a metáfora anteriormente (HERVIEU-LÉGER e WILLAIME, 2009, p. 21).
[3] Friedrigh Naumann (1860-1919), teólogo e politico liberal, primeiro presidente do partido democrata alemão, um dos fundadores da República de Weimar.
[4] A exemplo da construção de Moliére de seu personagem Harpagon, em O Avarento.
1 Trabalho apresentado à disciplina Fundamentos de Sociologia, Professora Dra. Maura Pardini Bicudo Veras, sob a orientação da Professora Dra. Maria Helena Villas-Boas Concone.