Livro e Tecnologia

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O livro já foi alvo de temores. Numa célebre passagem da obra imortal de Victor Hugo, Notre-Dame de Paris, o arcediago Claude Frollo, diante de um livro impresso – na época da história do romance (1482) uma nova tecnologia – aponta primeiro para o livro e depois para sua amada catedral e sentencia: “Isso matará aquilo”. Quer dizer, temia ele que o livro aniquilaria a capacidade imagética e a perenidade das obras arquitetônicas. 

Ainda o livro impresso, talvez atualmente o maior ícone representativo da cultura, foi inicialmente encarado com muita suspeita em relação aos livros manuscritos, no temor que ele romperia a familiaridade entre o autor e seus leitores. De fato, não são poucos os exemplos que demonstram que as novas tecnologias vêm sempre acompanhadas de temores; e a prática da leitura não é exceção, já que ela, em toda sua história, tem sido afetada pela tecnologia. 

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Por outro lado, contrapondo-se a esses temores, é interessante mencionar a preocupação de um artista em representar uma jovem estudante utilizando um conjunto de tábuas de cera – precursor do livro, e uma inovação na época – numa pintura em Pompeia, anterior a 79 d.C. Facilmente podemos relacionar a imagem de quase 2000 anos a uma apresentação atual, porém de igual objetivo.  Jovens portando notebooks e tablets de última geração são comuns na mídia.

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Assim, desde há muito,  o tema ‘leitura e tecnologia’, tem sido fonte de inumeráveis artigos, livros, análises e debates entre os educadores. À margem desses debates, porém, é possível afirmar que o texto cedo ou tarde lança mão de todos os meios em que possa fixar-se:  papiro, pergaminho, velino, papel, telas de LCD, papel digital, etc. De acordo com Pierre Lévy, o ciberespaço será em breve o principal equipamento coletivo internacional da memória, pensamento e comunicação. Qualquer política de educação terá que levar isso em conta. Por isso, o foco desses debates deve ser, não tanto a utilização ou não da tecnologia nas práticas de leitura, mas sim seus efeitos.

Há um fator, entretanto, que leva a realizar esses debates com certa cautela, e ele é o tempo relativamente pequeno de exposição às novas mídias. Ou seja, se considerarmos que a escrita conta com cerca de 6000 anos de existência e o livro impresso mais de 500, e que as mídias digitais se popularizaram há apenas poucas décadas, vemos que conclusões definitivas podem ser precipitadas. Além do que, na leitura, como na educação, os efeitos levam bastante tempo para se delinearem claramente.

Ainda assim, parece ser possível identificar algumas tendências. Por um lado, há autores bastante cuidadosos (para não dizer resistentes) no que se refere à utilização generalizada das novas tecnologias pelos leitores. Um deles, Nicholas Carr, relata sua experiência pessoal de perceber uma queda em sua capacidade de concentração. Seu impulso de espiar na Internet era quase incontrolável e que “a leitura profunda, antes tão natural para mim, tinha se transformado numa luta”. Ele vai além ao afirmar que o uso excessivo das mídias digitais está mudando, e para pior, o modo como pensamos. E ele não está sozinho. Nessa mesma linha, o prof. Mark Bauerlein, da Universidade Emory, na Geórgia, conduziu uma pesquisa com 81 mil estudantes americanos e constatou que 90% deles leem ou estudam menos de 5 horas por semana, ao passo que gastam 12 navegando na internet, na TV ou em vídeo games. Uma última referência ao desafio que os meios tecnológicos representam à prática da leitura é a feita pela profa. Lucia Santaella, quando afirma que a grande flexibilidade do ato de ler uma hipermídia, funciona como uma faca de dois gumes. Ela pode se transformar em desorientação se o receptor não for capaz de formar um mapeamento mental do documento. Segundo ela, transitar pelas infovias pode produzir desconcerto e frustração se o internauta não conseguir ajustar os alvos pretendidos ao programa estrutural do documento.

Por outro lado, seria precipitado, utilizar essas preocupações como um motivo para a não adoção dos recursos tecnológicos. Ao contrário, elas apenas demonstram a importância do papel dos profissionais da educação, que não foi alterado pela presença da tecnologia. O hipertexto eletrônico, para mencionar um dos recursos tecnológicos mais presentes, oferece potenciais sem precedentes de integração de mídias, mas, naturalmente, exige habilidades específicas que não se verificaram na história das práticas de leitura. O aspecto promissor é que essas habilidades podem (e devem) ser aprendidas (e ensinadas). Conforme o professor António Damásio, professor da Universidade do Sul da Califórnia, a afirmação de que a Internet tem um efeito ‘emburrecedor’ “é muito apressada. A dificuldade de concentração das gerações que nasceram usando os meios digitais não é irreversível. Qualquer criança e adolescente é capaz de aprender a desenvolver um padrão normal de atenção e concentração”.

E nesse fato fica evidente a importância do trabalho dos profissionais que lidam mais diretamente com as práticas de leitura. O potencial das ferramentas tecnológicas é enorme, mas de pouco servirão em mãos inexperientes. O primeiro passo nessa direção é apontado pelo prof. Marcos Tarciso Masetto que, descrevendo o papel dos educadores nesse novo ambiente, afirma que uma das necessidades atuais fundamentais diz respeito ao domínio da tecnologia educacional, em sua teoria e em sua prática. 

“Queremos que nossos objetivos sejam atingidos de forma mais completa e adequada possível, e para isso não podemos abrir mão da ajuda de uma tecnologia pertinente”. Ou seja, um primeiro passo importante é conhecer as potencialidades e características dos novos suportes do texto.

Portanto, os potenciais benefícios da utilização de recursos tecnológicos para as práticas de leitura devem ser um fator motivador para que os que trabalham em prol dela estejam ativamente atentos à sua implementação. É certo, porém, que muitos desafios se apresentam para que os leitores atuais unam as consagradas práticas de leitura – que demonstraram historicamente sua eficácia – ao novo ambiente tecnológico. Para isso, a mediação dos profissionais da leitura será indispensável.


Referências Bibliográficas

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CARR, N. A Geração Superficial: o que a internet está fazendo com nossos cérebros. São Paulo: Agir, 2011.

CHARTIER, R. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1997.

CHRISTENSEN, C. M.; HORN, M. B.; JOHNSON, C. W. Inovação na Sala de Aula: como a inovação disruptiva muda a forma de aprender. Porto Alegre: Bookman, 2012.

DAMÁSIO, A. E o Cérebro Criou o Homem. São Paulo: Cia. das Letras, 2011.

HUGO, V. O Corcunda de Notre-Dame. São Paulo: Martin Claret, 2006. Original em Francês Notre-Dame de Paris, 1831.

LÉVY, P. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2000.

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MASETTO, M. T. Competência Pedagógica do Professor Universitário. São Paulo: Summus, 2003.

SANTAELLA, L. Navegar no Ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.

SIMÕES, M. A. História da Leitura: do papiro ao papel digital. São Paulo: Terceira Margem, 2008.

© Marco A. Simões 2020