Os mosteiros tiveram tal impacto na história da leitura (e em outras áreas também), que os historiadores do livro costumam distinguir o período entre a queda do Império Romano Oriental e a invenção da tipografia em c. 1455 em duas partes. Do século V ao século XII, é chamado de monástico, que tem os mosteiros como centro da atividade intelectual, e, a partir daí é o período escolástico, ou laico, em que vemos o surgimento das universidades. [1] As práticas de leituras desenvolvidas nesses dois períodos são muito diferentes, conforme veremos.
5.1 As práticas de leitura no período Monástico
Durante o período monástico, os livros não eram feitos para circular. Restringiam-se à utilização nos mosteiros, dentro dos quais a vida era regida pelas normas de Bento de Nursia (480 – 547), fundador da ordem dos beneditinos e considerado o fundador do monasticismo. Uma dessas normas estabelecia que o jovem monge aprendesse a ler e a escrever decorando os 150 Salmos bíblicos. Após essa etapa, poderia passar à “ruminação”, ou seja, à repetição em voz alta das leituras e à meditação. A leitura em voz alta facilitava a decodificação do texto escrito, sem separação de palavras ou pontuação. Cada mosteiro, com seu scriptorium-biblioteca, constituía um grande repositório cultural da época, cultivado tanto pelos monges como por outras populações dependentes [2].
Com o fim das bibliotecas públicas pagãs do Império Romano, essas modestas bibliotecas dos mosteiros e igrejas tornaram-se o único reduto do livro. Nelas concentravam-se além da leitura, todas as atividades de elaboração, cópia, armazenamento e conservação dos códices. De fato, inicialmente essas dependências ligadas às igrejas surgiram inicialmente como arquivos dos documentos eclesiásticos, ampliando posteriormente suas funções. Não estavam disponíveis à população em geral. Antes, eram abertas aos padres locais ou viajantes para consulta dos tratados teológicos, embora sua principal função fosse a conservação dos documentos. Os textos eram produzidos na biblioteca papal e cópias eram enviadas aos mosteiros e igrejas, para a formação dos novos clérigos e orientações para a liturgia.
A biblioteca cristã, com seu scriptorio normalmente isolado, contribuiu para uma mudança importante na prática da leitura. Ao passo que as bibliotecas da antiguidade guardavam textos que seriam lidos em público, a biblioteca monástica trouxe a leitura para dentro de suas próprias dependências, favorecendo a leitura silenciosa e individual, o que representou uma das mais importantes mudanças de paradigma na prática da leitura.
A função de bibliotecário era considerada muito importante, e a nomeação de um dos monges para ela era feita numa cerimônia solene. Suas funções estendiam-se, além de guardar os livros, a dirigir o escritório, escolher as obras que deviam ser reproduzidas e os respectivos copistas. Depois do abade, o bibliotecário era o monge de maior importância. Graças ao trabalho anônimo de vários desses bibliotecários, obras de grande valor histórico foram preservadas em meio a guerras, saques, proibições, umidade e incêndios, e chegaram até nossos dias.
Dificilmente um códice saía da biblioteca do mosteiro, especialmente se fosse raro. Assim, para ampliarem seu acervo, copistas eram enviados ao local onde certo códice desejado se encontrava, e lá realizava o trabalho de cópia. Por vezes, mosteiros realizam essa atividade com o fim de trocarem códices entre si. A reprodução também representava uma fonte de renda ao mosteiro, visto que, por vezes, nobres encomendavam cópias luxuosas para as raras bibliotecas pessoais de então. [3]
A prática da leitura na alta idade média englobava quatro funções do estudo gramatical: a lectio, reconhecimento do texto; a ementatio, correção do texto; a enarratio, interpretação do texto: e, finalmente, o judicium, ou a avaliação das qualidades estéticas, morais ou filosóficas do texto. Um conjunto de regras gramaticais auxiliava o leitor nessas tarefas.
Usando esses conhecimentos gramaticais, e aliando fontes menos eruditas à utilização das escrituras, os educadores dos mosteiros buscavam formas de transmitir o conhecimento. Todos os cristãos que sabiam ler eram exortados a fazê-lo como uma forma de produzir sua própria salvação. Na busca de alcançar o rebanho menos intectualizado, os educadores dos mosteiros utilizavam de fontes menos eruditas e mais populares. Matinus de Capella, um retórico inexpressivo, era usado em detrimento de Cícero e Quintiliano. Júlianus Solinus, um compilador do século III, descritor de um mundo de monstros e prodígios, era usado ao invés dos geógrafos Plínio, Estrabão e Ptolomeu. Textos originais, incluindo a Bíblia, tendiam a desaparecer em meio aos comentários, chaves e glosas que os monges e clérigos achavam necessários. Conforme afirma Gontijo, a “ideia do controle por meio da fé passava pela catequese a qualquer preço”. Os fins justificavam os meios. E a popularização do discurso era a única forma de se fazer compreender [4].
Nesse contexto, ocorre paralelamente uma mudança importante na prática da leitura, que pode ser bem ilustrada com um episódio descrito por Agostinho de Hipona (345 – 430). Ao chegar a Milão, Agostinho visitou o bispo da cidade, Ambrósio, amigo e conselheiro de sua mãe, Mônica. Ambrósio tinha grande respeito do povo e das autoridades, mas Agostinho relata que era difícil falar-lhe, já que ele lia todo o tempo em que ficava sozinho. A descrição que Agostinho faz é significativa. “Quando ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu coração buscava o sentido, mas sua voz ficava em silêncio e sua língua quieta. Qualquer um podia aproximar-se dele livremente, e em geral os convidados não eram anunciados; assim, com frequência, quando chegávamos para visitá-lo nós o encontrávamos lendo em silêncio, pois jamais lia em voz alta” [5].
A surpresa de Agostinho implica que a forma de ler de Ambrósio não era comum à época. Alguns outros casos de leitura silenciosa anteriores são descritos, mas de modo mais incerto e circunstancial, e nenhum com tanta riqueza de detalhes. Além disso, o conceito de Agostinho sobre a palavra escrita explica a surpresa. Conforme explica Manguel, seguindo os ensinamentos de Aristóteles, Agostinho achava que as letras eram “signos de sons” que, por sua vez, eram “signos das coisas que pensamos”. O texto escrito era, portanto, apenas uma representação gráfica de sons, que podiam transportar nossas palavras para um interlocutor ausente, para que ele pudesse pronunciá-las por nós. [6]
No século VII, Isidoro de Sevilha, diferentemente de Agustinho, considerava as letras sinais sem som (sine voce), conforme ele explica na enciclopédia que compilou já no final de sua vida, a Etymologiae (Origens). Isidoro elogia a leitura silenciosa com um método para “ler sem esforço, refletindo sobre o que foi lido, tornando sua fuga da memória mais difícil” [7]. A partir daí, a escrita passa a ser uma linguagem capaz de comunicar-se de forma direta com a mente. Essa nova prática de leitura afetou inclusive os métodos de alfabetização. Conforme explica Parkes, as crianças eram solicitadas a lerem versos copiados dos Salmos antes de terem aprendido a ordem das letras do alfabeto, o que enfatizava a função das letras e palavras no texto, mais do que seu significado sonoro [8].
A essa valorização da palavra escrita per se, e não como mera representação do som, seguiram-se progressos significativos nas técnicas de disposição do texto na página. Grande parte desses progressos baseava-se nas regras gramaticais, com vistas a simplificar a leitura dos textos. As palavras passaram a ser escritas separadas, abandonando-se finalmente o scriptio continua. Esta alteração contribuiu significativamente para o aprimoramento da prática da leitura. Com o scriptio continua dificilmente uma leitura poderia ser realizada à primeira vista, exigindo um tempo muito maior para sua utilização. Além disso, ela incorria em imprecisões de interpretação. Por exemplo, Manguel, citando Parkes, conta-nos que Donato, gramático do século IV, leu na Eneida, de Virgílio as palavras collectam exilio pubem (“um povo reunido para o exílio”) como collectam ex Ilio pubem (“um povo reunido de Tróia”).
Gradualmente, a separação das letras em palavras e frases consolidou-se. Os escribas irlandeses, famosos por sua habilidade, passaram a introduzir também sinais de pontuação. São deles as primeiras utilizações “letras mais visíveis”, ou littera notabilior, para dar maior ênfase visual ao início de um texto, iniciando a alternância entre caracteres maiúsculos e minúsculos, tal qual conhecemos hoje. Essa alternância foi usada pelos copistas anglo-saxões, reservando-os a escrita em maiúsculas unciais para os escritos sagrados e documentos eclesiásticos, e as minúsculas para comentários. Assim, o leitor podia identificar visualmente o texto principal das citações acrescentadas. Essas diferenças que hoje tomamos por muito familiares exigiram considerável tempo para se desenvolverem. Por exemplo, se compararmos a letra “A” maiúscula com a letra “a” minúscula, constataremos que temos realmente dois alfabetos bastante diferentes, sem mencionar a escrita cursiva. Os escribas irlandeses também introduziram muitos dos sinais de pontuação que utilizamos até hoje.
Adicionalmente, no século X o texto passou a ser separado por traço divisório (paragraphos, em grego), sendo a primeira letra de cada parágrafo escrita um pouco maior, ou em maiúscula. As explicações independentes eram anotadas em vermelho (rubricas, em latim). [9]
Essas medidas dos copistas irlandeses e anglo-saxões evidenciam que o texto seria, presumivelmente, lido em silêncio, e contribuíram sobremaneira para a prática da leitura nessa forma. De fato, mais do que conforto visual, a nova prática de leitura e as facilidades que passaram a ser implementadas tiveram um impacto profundo na relação do leitor com o texto. Essa relação não seria limitada pela necessidade de compartilhá-las com mais alguém, como na leitura pública.
Não foi, porém, sem esforço dos escribas que esses formatos se consolidaram. Além do cuidado com a clareza e desenho das fontes, os muitos códices tornaram-se verdadeiras obras de arte. Gontijo cita o colofão do códice Silos Beatus, uma iluminatura produzida no Monastério de Santo Domingo de Silos, na Espanha, por volta de 1100 d.C, onde o escriba registra que seu trabalho “embaralha a vista, causa corcunda, encurva o peito e o ventre, dá dor nos rins. É uma rude provação para todo o corpo. Assim, leitor, vira delicadamente as páginas e não ponhas os dedos nas letras.” [10]
Esses desenvolvimentos traziam o texto cada vez mais próximo do leitor, e refletiam a crescente importância dada à análise e à compreensão pessoal do texto escrito. Para o Papa Gregório, o Grande (540 – 604), a leitura, sobretudo, a da Bíblia, devia ser um diálogo com o texto. No prefácio do livro IV de sua obra Moralia de Job, ele escreveu que “quem quer que olhe para esse texto sem entendimento do espírito do discurso sagrado, tanto não instruirá a si mesmo com sabedoria, como se confundirá com ambiguidades, porque algumas vezes as palavras do texto literal contradizem-se.... Para buscar a compreensão da verdade, precisamos humildade de coração: para encontrá-la, leitura diligente”.
Mais adiante, no final do século VIII, Beatus, um monge do Monastério de Santo Toríbio de Liébana, Espanha, em seu livro Adversus Elipandum, compara o conjunto da gramática ao corpo humano. Segundo ele, assim como o homem é composto de corpo, alma e espírito, a compreensão do livro deve transcender à sua forma física, e ser entendido em seu contexto histórico, moral e místico.
Nos séculos IX e X vários outros tratados orientavam a interpretação dos textos sagrados e a exegese. Rabanus Maurus, inspirado em Agostinho, no terceiro volume de um manual de treinamento para a formação dos clérigos explica que tanto os escritos sagrados devem ser investigados e ensinados, como também as obras pagãs deveriam ser conhecidas pelos homens da igreja. Por isso, várias obras clássicas pagãs eram objetos de estudo, como os poemas de Orfeu e contos mitológicos.
Esse conjunto de fatores que deram mais liberdade ao leitor para aproximar-se do texto teve importantes consequências. Com a leitura silenciosa, o leitor podia estabelecer uma relação sem restrição com o texto, que a leitura em voz alta não permitiria. No episódio já citado, em que Agostinho observa a leitura solitária e silenciosa de Ambrósio, ele especula que “talvez ele tivesse medo de que, se lesse em voz alta, algum trecho difícil do autor que estivesse lendo poderia suscitar uma indagação na mente de um ouvinte atento, e ele teria então de explicar o significado da passagem ou mesmo discutir sobre alguns dos pontos mais abstrusos”.
Com a mente desobrigada de ocupar-se da articulação dos sons e da correta entonação, o leitor poderia empregá-la para inspecionar os sentidos do texto, para questioná-lo e interagir com ele, de formas não concebidas anteriormente. O texto poderia ecoar internamente, livre da censura ou da condenação de um ouvinte, possibilitando uma comunicação direta e íntima entre o leitor e o texto. Essa possibilidade, que os padres viam como um caminho de elevação do espírito através da compreensão profunda dos textos sagrados, resultou também num perigo que talvez não lhes tenha ocorrido: os pensamentos e conclusões resultantes dessa aumentada capacidade de interação nem sempre iriam ao encontro dos dogmas da igreja. Ao contrário, abririam a oportunidade de questioná-los. Se não tanto, alguns dogmatistas temiam que a leitura silenciosa abrisse espaço para o devaneio e a preguiça.
De modo incipiente ainda, mas que ganhariam força nos séculos à frente, vários movimentos passaram a preocupar a Igreja, semelhante ao que ocorrera em seus primórdios com as que defendiam o arianismo. Outras dissidências levaram à primeira aplicação da pena de morte na fogueira para heresia. Embora instituída em 382, foi aplicada apenas em 1022 pelo Sínodo de Orleans a um grupo de cônegos e nobres laicos, maniqueístas que acreditavam que Escrituras eram um produto da fabricação de homens, e que a instrução verdadeira poderia vir somente do Espírito Santo. [11]
Movimentos similares, especialmente que contestavam a autoridade corrupta do clero abusivo e questionavam a autoridade da Igreja na produção da salvação individual começaram a ganhar adeptos, embora de forma desorganizada a princípio. Entretanto, cresceriam o suficiente para causar um grande impacto histórico no século XVI, em especial ao aliarem-se ao desenvolvimento da produção de textos escritos, conforme veremos. Antes, porém, importantes desenvolvimentos na prática da leitura ainda teriam lugar, já na baixa idade média, no período chamado pelos historiadores de escolástico.
5.2 As práticas de leitura no período Escolástico
O período escolástico da Idade Média caracterizou-se por buscar resgatar o pensamento filosófico aristotélico, numa doutrina sistematizada por Tomás de Aquino (1225 – 1274), profundo admirador de Aristóteles, cujos ensinamentos lutou para adequar aos dogmas da Igreja. Embora nesse período o formato do livro não sofra mudança substancial, a não ser pelo seu tamanho, que diminui, três acontecimentos alterarão profundamente as práticas de leitura: a introdução do papel no ocidente, as cruzadas e o desenvolvimento das universidades. [12]
O papel, cuja invenção, conforme vimos, é atribuía a Ts’ai Lun, na China, no ano 105 a.C., passou a ser utilizado na Itália por volta do século XIII. Sua adoção não ocorreu sem resistência, a princípio. Por um lado, os padres o rejeitavam como algo criado por seguidores de Maomé. As primeiras amostras chegaram pelas mãos dos cruzados, ao retornarem dos confrontos com muçulmanos. Por outro lado, muitos o consideravam de qualidade inferior. Assim, sua utilização era restrita a documentos de menor importância. Os avanços em sua produção colocaram em evidência suas vantagens, o que resultou em sua crescente utilização, em detrimento do pergaminho, cada vez mais difícil de obter.
Por volta do século VII, os árabes contavam com uma significativa população não somente na península arábica, como também em Roma, Pérsia e Egito. Sob o comando de Maomé (570 – 632), as tribos árabes se uniram e empreenderam uma grande campanha de conquista que estendeu o mundo islâmico pela Europa e Portugal, incluindo a Palestina, considerada a “Terra Santa”. Com o objetivo declarado de colocá-la novamente sob a soberania dos cristãos, vários movimentos partiram da Europa Ocidental entre os séculos XI e XIII, movimentos esses que vieram a ser chamados de Cruzadas. Como um todo, as Cruzadas foram um grande fracasso. O historiador italiano Franco Cardini observa: “Nessa época, as Cruzadas haviam progressivamente evoluído numa intrincada operação política e econômica, um complexo jogo de poder envolvendo bispos, abades, reis, coletores de doações, banqueiros. Nesse jogo foi o sepulcro de Jesus que perdeu toda a sua importância.” Cardini diz também: “A história das Cruzadas é a história do maior erro, da mais complexa impostura, da mais trágica e, em certos sentidos, da mais ridícula, ilusão de toda a cristandade”. [13]
Apesar desse fracasso, Poirier observa que as Cruzadas tiveram como uma consequência a abertura do mundo fechado dos mosteiros e desenvolvido as ordens mendicantes, extremamente móveis [14]. A vida religiosa, antes confinada aos mosteiros, passou a permear a sociedade através dessas ordens. Os franciscanos pregavam a pobreza entre o povo. Os dominicanos ocupavam-se do ensino religioso nas universidades. Esses fatos juntaram-se à adoção do papel na popularização do livro e da leitura. A eles se somaria ainda o desenvolvimento das universidades.
A fragilização do poder dos mosteiros, o crescimento das cidades e o movimento comunal deslocaram a atividade educacional cada vez mais para as universidades. O aumento do número de estudantes, e também a percepção do texto escrito como uma extensão da memória e repositório de informações, e não apenas como registro do discurso sonoro, aumentou a demanda por livros. Os estudantes passaram a ter a necessidade de ter seus próprios livros, quer comprados, quer copiados por eles mesmos. O livro deixa de ser propriedade exclusiva dos mosteiros e passa a se tornar um produto urbano e laico, concomitantemente com o nascimento da classe burguesa.
Essa relativa popularização da prática da leitura ocorre simultaneamente a, e também por conta de, uma mudança radical da própria concepção do ato de ler, verificada na transição do período monástico para o escolástico. Não será por acaso que data dessa época, século XII, um tratado sobre a arte de ler, chamado Didascalion, escrito por Hugues de Saint-Victor, afirmando o papel fundamental da leitura na educação. Ivan Illich explica que na introdução do Didascalion Hugues “instrui o leitor nas regras a serem observadas na escolha e utilização dos livros seculares e nas sessões seguintes ele ensina como os livros sagrados devem ser lidos por um homem que busca neles correção para sua moral e modo de vida”. [15]
Com efeito, essa época corresponde a uma tomada de consciência do ato de ler, após a qual a leitura não será concebida sem certa organização. O método seguido para se realizar a leitura passa a tomar importância. Numa carta enviada ao citado Hugues de Santi-Victor por um contemporâneo seu tinha o significativo subtítulo “Sobre a maneira e a ordem a se seguir na leitura da Escritura Sagrada”. [16]
Esses métodos visavam também um melhor rendimento da leitura, em vista do crescimento da produção literária. Os intelectuais necessitavam alcançar maior agilidade em tomar conhecimento do grande número de obras. Os livros deixam de ter apenas uma finalidade sacra ou espiritual, como no período monástico, e passam a ter uma finalidade prática, pela qual precisa ser manuseável e acessível com frequência. Seu formato diminui e as letras também. O formato maior, o in-folio, comum nos mosteiros, não era adequado ao transporte e à utilização diária.
Florilégios, ou antologias, serviam a essa finalidade, assim como outros instrumentos de trabalho, tais como concordâncias e tabelas, que permitiam ao leitor localizar mais rapidamente certos trechos, sem ler a totalidade do livro. Hamesse cita como exemplo os Libri sentetiarum, de Pierre Lombard, escrito para os teólogos. No prefácio, o autor explica que o objetivo da obra como sendo de que “o pesquisador não tenha necessidade de consultar uma grande quantidade de livros, ele a quem a brevidade dos resumos reunidos oferece sem esforço o que procura”. Curiosamente, esse instrumental teve como consequência uma perda do caráter meditativo da leitura. Conforme explica Hamesse, “essas coletâneas serviam unicamente como reservatórios de textos, e não estimulavam a criatividade. Sua consulta nunca favoreceu a elaboração de teorias novas ou a explicação de uma metodologia original, seja para a exegese, seja para a redação de um comentário pessoal.” [17]
Essa constatação é surpreendentemente similar à preocupação de muitos educadores atuais que vêem nos mecanismos de busca da Internet um potencial perigo à fragmentação da informação e sua análise superficial. Nesse sentido, Wurman afirma que “o exagero [na informação] começou a nublar as diferenças marcantes entre (...) fatos e conhecimento” [18].
As coletâneas eram especialmente apreciadas pelos jovens estudantes, que quando da entrada à universidade, confrontavam-se com doutrinas por vezes obscuras. Sobre a prática da leitura dessas ferramentas entre os estudantes, Callus explica:
"Como nas mais distintas Faculdades de Teologia, Direito e Medicina, também na Faculdade de Artes as Abbreviationes, Extracta ou Summae, como eram geralmente chamadas, ganharam não pouca simpatia entre os estudantes. O objetivo dos tratados, comentários e quaestiones, que representavam em graus variados o método e a técnica de ensino da universidade medieval, foi uma tentativa para entender o pensamento do autor e para descobrir o significado profundo de sua doutrina com todas as suas implicações. As abbreviationes pretendiam oferecer aos principiantes um resumo dos conteúdos de seus livros didáticos. Na Faculdade de Artes as abbreviationes podem ter sido usadas possivelmente como livros didáticos através dos quais o cursor introduzia os noviços ao corpus aristotélico; ou talvez se pretendesse que elas fossem simplesmente um auxílio prático no escudo privado. De qualquer modo, estavam em constante uso nas escolas como o ponto inicial do exercício filosófico. Apresentavam em urna forma concisa as noções filosóficas fundamentais que eram consideradas necessárias a todos que tentassem o escudo do próprio texto". [19]
É possível observar, portanto, uma transformação importante na utilização desses resumos. A princípio, serviam apenas para fins de documentação, mas, pela facilidade de consulta, logo foram usados como introdução às obras originais para finalmente constituírem o próprio “livro didático”, em lugar do texto original. Essa prática não se restringiu aos alunos. Numerosos docentes, por dificuldade de compreender os originais, ou por limitações econômicas, limitavam-se ao estudo e ensino dos resumos, sem recorrerem aos originais. Hamesse classifica esse processo como um “empobrecimento real no domínio do conhecimento dos textos obrigatórios”. É fácil traçar um paralelo à situação atual dos leitores, conforme as pesquisas recentes. Por exemplo, o Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional de 2005, reporta que apenas 26% dos brasileiros têm um nível de alfabetização considerado pleno. [20]
Não bastasse o afastamento do contato com os originais, os resumos e coletâneas, por sua rápida multiplicação, apresentavam outro grave problema: a seleção. Muitos dos resumos que circularam em grande quantidade entre os estudantes eram anônimos, e o método utilizado na seleção dos trechos que nele constavam era desconhecido. O leitor desses resumos estava, portanto, à mercê de uma escolha feita por outrem, sob o risco de jamais ter contato com passagens inteiras que não tenham sido julgadas dignas de constar da coletânea. É certo afirmar que elas representavam, de fato, uma deformação do pensamento original, já que qualquer redução, tomada como sendo a totalidade de uma obra, inevitavelmente representa uma simplificação, com a ausência de importantes nuances.
Essa adoção de coletâneas verificou-se também, paralelamente, nas ordens religiosas, por razões várias e complementares. A escolha de textos que comporiam a coletânea permitia a omissão daqueles que poderiam gerar interpretações contrárias às adotadas pela Igreja. As ordens que queriam evitar confrontos doutrinais viram nas coletâneas uma forma de evitar a propagação de ideias que favorecessem o debate. A utilização de resumos e coletâneas atingiu a corte papal, e até o próprio papa, que, com eles, ficaria dispensado de ler os originais, por falta de tempo ou gosto.
Assim, pode-se afirmar que o modelo escolástico determinou práticas de leitura diferentes dos períodos anteriores. É certo que nem sempre os resultados possam ter sido os melhores, em vista da superficialidade e fragmentação que se verificou, como efeito secundário. Mas a apropriação da leitura por outros que não os eclesiásticos, a leitura como atividade prática, o livro como objeto e as alterações em sua forma e na forma do texto, todas essas constituíram mudanças fundamentais. A expansão urbana e as atividades comerciais em torno dos castelos (burgos), com a resultante emergência da classe burguesa, gerou uma nova clientela para o livro. A classe leiga passou interessar-se por obras artísticas, teatro, romances de cavalaria[21] e a vida dos santos. Como os mosteiros não eram produtores dessas obras, e como as que produziam não eram suficientes em quantidade, proliferaram oficinas laicas de copistas, encadernadores, pintores de miniaturas e iluminadores[22], assim como comerciantes de livros: os livreiros. Em outras palavras, surgia toda uma classe de profissionais do livro, desvinculados da Igreja.
Essa combinação de fatores favoreceu, já no século XIV, um movimento de retomada dos valores clássicos, principalmente motivado pelo pensamento dos humanistas. Embora as técnicas universitárias de leitura tenham privilegiado aspectos de pura praticidade, em detrimento da leitura por prazer, intelectuais e bibliófilos conservaram o gosto pela leitura e trabalharam para promovê-lo.
Um desses eruditos foi Richard de Bury (1287 – 1345), monge beneditino, bispo e escritor. Devotou grande parte de seu trabalho em buscar, coletar, restaurar e organizar manuscritos em várias bibliotecas (possuía uma em cada uma de suas casas). Para tanto, mantinha uma equipe de copistas, encadernadores e iluminadores. Embora não desprezasse os autores de sua época, tinha uma clara preferência pelos clássicos, e seu legado de estudos das gramáticas grega e hebraica é notável. A obra de sua autoria pela qual é mais lembrado é Philobiblon (do grego “amante de livros”). Nesse trabalho, Bury busca inculcar no clero a necessidade da busca pelo conhecimento e o apreço pelos livros como repositórios desse conhecimento. Explica os motivos que o levaram a empenhar-se tanto na recuperação e manutenção de manuscritos, e também fornecer instruções de como organizá-los.
O trabalho de Bury é uma amostra do esforço que muitos conventos, através das ordens mendicantes, faziam para alimentar suas bibliotecas. Como consideravam o tempo de cópia um desperdício, procuravam comprar a maior quantidade possível. Junto à demanda crescente dos universitários, esse cenário gerou uma escassez de livros no mercado, escassez essa que iria encontrar uma solução natural e inesperada.
A Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453) entre França e Inglaterra, mas envolvendo muitos países da Europa, provocara uma enorme devastação, obrigando os camponeses a abandonar suas terras, resultando numa grande fome que, favoreceu a disseminação da Peste Negra, em 1348, e dizimou especialmente as cidades, reduzindo a população a um terço. Embora tenha sido muito trágica, a Peste teve como um dos efeitos secundários gerar uma enorme quantidade de livros disponíveis, deixando-os acessíveis aos estudantes num momento em que o interesse pelo retorno aos clássicos já se manifestava entre intelectuais.
John Man aponta uma consequência talvez ainda mais profunda da Peste:
Sobre as causas, ninguém sabia nada naquele momento, e nisso está o verdadeiro horror. Houve eventos de impacto equivalente - o Holocausto, as bombas em Hiroshima e Nagasaki, a AIDS quando descrita pela primeira vez -, mas nada em uma escala comparável. É a falta de explicação que perturba as mentes. As pessoas podem enfrentar algo com medo e sofrer melhor se entenderem ou sentirem que podem entender. Nos campos concentração nazistas comunistas e testemunhas de Jeová preservaram a sanidade em um mundo enlouquecido por causa da certeza de serem atores em um drama escrito por leis da história ou de Deus Os cristãos europeus viram apenas um mundo de cabeça para baixo. O Deus bíblico prometera salvação na próxima vida, assim como apoio nessa. Agora Ele parecia repentinamente sem poderes, ou mesmo um adversário. Por quê? A ignorância produzia uma histeria por explicações e consolo. [23]
O cenário configurava-se para o Renascimento.
[1] POIRIER, Jean (org.). História dos Costumes. Vol. 1, O Reino Humano, Cap. III, O Homem e o Livro, p. 177.
[2] GONTIJO, Silvana. O Livro de Ouro das Comunicações, p. 121.
[3] ESCOLAR SOBRINO, Hipólito. História de las Bibliotecas. Madrid, Espanha: Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 1990. Apud RAMÍREZ, Paola. História de La Comunicación Gráfica.
[4] GONTIJO, Silvana. O Livro de Ouro das Comunicações, p. 122.
[5] AGOSTINHO. Confissões. VI, 3. Apud MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura, p. 58.
[6] AGOSTINHO. Concerning the trinity. Apud MANGUEL, Alberto. Op. cit., p. 61.
[7] ISIDORO de Sevilha. Libri Sententiae, III, 13:9, citado em Etymologiae.
[8] PARKES, Malcolm. Op. cit., p. 106.
[9] MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura, p. 67.
[10] GONTIJO, Silvana. Op. cit., p. 123.
[11] MOORE, Robert lan. The birth of popular heresy, p. 10.
[12] POIRIER, Jean. Op. cit. p. 178.
[13] Watchtower Library. g1997 8/10. As Cruzadas: uma trágica ilusão. 2006 CD-ROM.
[14] POIRIER, Jean. Op. cit., p. 178.
[15] ILLICH, Ivan. In the Vineyard of the text: a commentary do Hugh’s Didascalicon.
[16] HAMESSE, Jacqueline. O modelo escolástico da leitura. In CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. Op. cit, p. 123.
[17] HAMESSE, Jaqueline. Op. cit., p. 127.
[18] WURMAN, Richard S. Ansiedade de informação, p. 41.
[19] CALLUS, D. A. "Introduccion of Aristotelian Learning to Oxford". In Proceedings of the British Academy, 19, 1943, p. 275. Apud HAMESSE, Jaqueline. Op. cit., p. 313.
[20] INAF. Disponível em: <http://www.ipm.org.br>. Acesso em: 26 dez. 2006.
[21] São dessa época o Romance da Rosa, c. 1225, de Guilherme de Lorris, e O Livro da Ordem da Cavalaria, c. 1280, de Ramon Llull.
[22] Iluminadores eram artistas que produziam ilustrações para os livros, chamadas iluminaturas. Algumas das que estão preservadas até hoje são belíssimas obras de arte.
[23] MAN, John. A Revolução de Gutenberg, p. 34.