I. Suportes e práticas até Gutenberg

Desde os tempos antigos a humanidade se interessa pela leitura. O rei assírio Assurbanipal, no século VII a.C., por exemplo, organizou uma biblioteca de 22.000 tabuinhas de argila e outros textos e declarou: “Tive alegria na leitura de inscrições em pedra da época anterior ao dilúvio”.1

A prática da leitura está intrinsecamente ligada à história da humanidade, e do homem como indivíduo. De fato, o historiador Roger Chartier afirma que a história da leitura é a história de cada leitor, e que “cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado, aos textos do qual se apropria”. 2 Além disso, uma história compreensiva das práticas de leitura deve ser contemplada com a história de seus suportes materiais, seus modos de utilização, de compreensão e de apropriação do texto.

Todo texto necessita de um suporte sobre o qual ele deva ser fixado. Assim, o objeto de leitura, além dos caracteres agrupados semanticamente, constitui-se também desse suporte, e se torna parte do conjunto do que lemos e, como tal, interfere na prática da leitura. Conforme ensina o pesquisador Guglielmo Cavallo, “é preciso considerar que as formas produzem sentido e que um texto se reveste de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os suportes que o propõe à leitura”. Assim, fazer uma história das práticas de leitura implica tanto no levantamento dos usos históricos do livro como nas várias formas particulares que o material impresso assumiu. O próprio Chartier afirma que “lemos Platão, Tucídides, Heródoto ou Sófocles como se houvessem escrito códices, ou, ainda, textos feitos para a imprensa, de modo que se esquece que as formas materiais implicam formas de entendimento dos textos”. Ainda ensina Chartier:

“...a forma do objeto escrito dirige sempre o sentido que os leitores podem dar àquilo que lêem. Ler um artigo em um banco de dados ele- trônico sem saber nada da revista na qual é publicado, nem dos artigos que o acompanham e ler o mesmo artigo no número da revista na qual apareceu, não é a mesma experiência. O sentido que o leitor constrói, no segundo caso, depende de elementos que não estão presentes no próprio artigo, mas que dependem do conjunto dos textos reunidos em um mes- mo número e do projeto intelectual e editorial da revista ou jornal.” 

Assim, antes de passar a uma consideração histórica das práticas de leitura, convém mencionar os suportes convencionais do texto escrito, uma vez que influenciam sobremaneira na prática da leitura, e também serão referidos com frequência na  pesquisa.

1. Os suportes tradicionais e seus impactos

Os suportes e formatos utilizados no decorrer da história foram inúmeros. Temos pictogramas nas paredes das cavernas, se conside- rarmos a pictografia como forma de escrita. Encontramos também representações de tabuletas de argila na Mesopotâmia, pequenas o suficiente para serem manuseadas, e várias delas podiam ser agrupadas para formar uma espécie de livro. Cacos de potes de cerâmica,     ou óstracos (do grego ó.stra.kon) eram usadas também para votos e mensagens, como as Cartas de Laquis, descobertas em Tell ed-Duweir, 48 km a sudoeste de Jerusalém, da época do último rei do reino de Judá, Zedequias, logo antes da invasão de Babilônia, no final do século VII,  contendo  mensagens militares.

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Figura 1 – Registro de nascimento numa tábua com cera, datada de 128 d.C. Fonte:

The University of Michigan Papyrus Colletion.

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Figura 2 – Uma jovem segura um conjunto de tábuas com cera, no formato de um códice. Pintura numa parede

de Pompéia, anterior a 79 d.C. Fonte: STRONA, Kakaja. Pompey Gallery.


Tábuas recobertas de cera eram uma forma prática de registros temporários, como por exemplo, o aprendizado da escrita pelos alunos gregos, cartas particulares e anotações pessoais. Uma prancha de madeira com as bordas ligeiramente altas era preenchida com uma fina camada de cera, que, após a utilização poderia ser raspada e reutilizada. Tanto na Grécia como em Roma, eram usadas ao mesmo tempo em que os rolos eram o suporte principal do livro 6. A figura 1 ilustra esse suporte.

As bordas permitiam que várias tábuas fossem empilhadas e, uma vez unidas, se assemelhariam ao futuro formato do códice. Na figura 2, segue uma jovem utilizando um conjunto de tábuas em formado de códice.

A Bíblia registra que o Decálogo (chamados de Os Dez Mandamentos) dado à nação de Israel foi escrito em Tábuas de Pedra, e a expressão “Tábuas de Pedra” ocorre quatorze vezes na Bíblia.

A madeira também foi muito usada, por seu baixo custo e ampla disponibilidade. Várias etiquetas de madeira para identificar múmias no antigo Egito são encontradas, assim como pranchas, usadas por alu- nos gregos, e as várias placas de madeira usadas para correspondência pelo exército Romano no forte de Vindolanda, norte da Inglaterra, no século  II  d.C. 9.

Além desses materiais, usados pontualmente em certas circunstâncias, três outros tiveram notável influência na história da leitura, particularmente por tornarem o texto manejável e portátil: o papiro, o pergaminho e o papel. Esses três materiais foram usados em dois tipos principais de montagem: o rolo e o códice. Iniciamos considerando os materiais, e as montagens serão descritas a   seguir.

O primeiro dos três materiais principais usados como suporte do texto foi o papiro. Originalmente, trata-se de uma planta (Cyperus papyrus) da qual é extraída  a matéria prima para a fabricação do material de escrita de mesmo nome, representada na figura 3. O papiro viceja em águas rasas e estagnadas, pantanosas, ao longo de rios de curso lento, como o baixo rio Nilo, Niger e Eufrates, conforme relatado por Plínio, o Velho (23 – 79 a.C.) 10. As hastes da planta também eram usadas para a  fabricação  de  utensílios e barcos. A Bíblia registra que Moisés foi colocado por sua mãe numa  arca  de  papiro  revestida de betume e piche, que flutuou no Nilo até ser encontrada ela filha do Faraó 11. Há uma referência a barcos velozes de papiro da Etiópia,  cruzando  o  mar 12.

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Figura 3 – Planta Cyperus Papyrus, da qual é extraída a matéria-prima para a fabricação do papiro. Fonte: PINGSTONE, Adrian. Papiro.


Para a fabricação do material de escrita, que doravante será chama- do pelo nome da planta, papiro, a parte submersa do caule, mais grossa e mais branca, é que era utilizada. Ele era cortado em pedaços de 40 a 45 centímetros e tinha sua casca removida. Do cerne eram extraídas tiras largas e finas, que, depois de secas, eram mantidas imersas em água por seis dias com vinagre para eliminação do açúcar. Secas novamente, eram colocadas verticalmente sobre uma superfície lisa, ligeiramente imbricadas. Sobre essa camada, aplicava-se uma fina camada de cola.  A seguir, uma nova camada de tiras, dessa vez na horizontal, era colo- cada e as batidas de pequenos malhos faziam com que ficassem bem coladas. Eram então colocadas entre dois tecidos de algodão, prensa- das por mais seis dias, para que as duas camadas se tornassem uma. Depois disso, as superfícies eram polidas com pedras pome, conchas ou marfim, e as folhas aparadas no tamanho desejado. Normalmente, a escrita começava pela parte que tinha as tiras horizontais, de modo que as juntas das tiras serviam para orientar a mão do copista. Às vezes, o verso era utilizado para a conclusão do documento.

As folhas de papiro eram coladas pela borda a outras folhas, e a junção de cerca de vinte delas constituía um rolo, que tinha, em média, de 4 a 6 metros de comprimento. A palavra Bi.blos aplicava-se  à medula do papiro, e posteriormente foi usada para referir-se aos livros. Uma cidade fenícia, depois de tornar-se um centro de fabricação de papiro, passou a se chamar Biblos. A palavra “papel” tem origem semântica  em “papiro”.

O papiro foi usado muito tempo como material de escrita, inicialmente na forma de rolo, no Egito, por volta do século XXX a.C., seguindo por toda a Idade Antiga, até o século II, quando passou a ser utilizado na forma de códice. No século IV sua popularidade diminuiu, e em seu lugar o velino passou a ser mais utilizado. Um material usado por tanto tempo sem dúvida tem muitas vantagens: baixo custo, ampla disponibilidade, fonte renovável e processo de fabricação simples. Por outro lado, deteriorava-se rapidamente em ambiente úmido e torna- va-se muito quebradiço em ambiente seco. No século XVIII achava- se que todos os manuscritos de papiro já haviam sido destruídos. Entretanto, no século XIX importantes papiros foram encontrados na região do Mar Morto, por terem sido guardados em condições ideais de preservação. Boa parte dos Rolos do Mar Morto, descobertos entre 1947 a 1956, é escrita em papiro.

O termo papiro também é utilizado no nome de documentos importantes feitos desse material. Por exemplo, o Papiro de Nash,  um manuscrito hebraico que remonta ao século II ou I a.C. e  contém partes da Torá 14. Abaixo, nas figuras 4 e 5, dois exemplos de utilização  do papiro.

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Figura 4 – Seção do Livro dos Mortos, egípcio, datado de 1300 a.C.

Fonte: Department of Egyptian Antiquities.

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Figura 5 – Fragmento da obra Symposium, de Platão, preservado em papiro.

Fonte: Berkeley University.


Um segundo material importante usado como suporte da escrita foi o pergaminho. Os pergaminhos eram feitos de pele animal, poden- do ser ovelha, carneiro, cabra ou bezerro, especialmente preparadas para escrita. Segundo o historiador Plínio, o Velho, no século II a.C., Eumênes II, rei de Pérgamo, desejava organizar uma biblioteca  enorme.

Ptolomeu, governante do Egito, onde se situava a biblioteca de Alexan- dria, encarou a decisão de Eumênes de forma não amistosa, e, portanto, proibiu a exportação de papiro.

Essa decisão teria levado o pergaminho a ser inventado, na cidade de Pérgamo. Essa versão é improvável, já que usos anteriores de pergaminho haviam sido registrados. O historiador Heródoto (484 – 425 a.C.) refere o uso de pergaminho já no seu  tempo.  Talvez tenha ocorrido, na verdade, uma popularização do uso do pergaminho por volta dessa época. Outra possibilidade é que em Pérgamo desenvolveram-se técnicas importantes de fabricação, que contribuíram para a utilização do pergaminho, dado o embargo na exportação do papiro e à necessidade de manter a biblioteca de Pérgamo, cujo tamanho só era superado pela de  Alexandria.   15

As peles dos animais eram colocadas imersas numa solução de cal por três dias para que a remoção de gordura, carne e pelo fosse mais fácil. Depois do banho as peles eram completamente limpas e os pelos rapados. A seguir, eram colocadas esticadas para secar, e uma vez secas, eram lixadas em ambos os lados de modo a diminuir a espessura e tornar a superfície mais lisa para a escrita. As peles desti- nadas para a escrita eram branqueadas usando pó de gesso. 

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Figura 6 – Exemplo de iluminura, em cuja fabricação as peles de animais eram preferidas. 

Fonte: The York Project: 10.000 Meisterwerke der Malerei.


As destinadas a um tipo especial de texto chamado iluminuras eram tratadas com talco, para se tornarem mais opacas. As iluminuras eram textos ornamentados com figuras ou letras estilizadas, usualmente gravadas em ouro  ou prata. Atualmente, o termo iluminura é estendido a qualquer manuscrito decorado. Uma iluminura de um Livro de Horas (livro de orações) francês do século XV está representada na figura 6.

A utilização de peles de animais resultava em um suporte menos flexível que o papiro, mas mais agradável à vista e ao manuseio. Também, permitia a escrita em ambos os lados. A figura 7 ilustra o processo da fabricação de pergaminhos. 

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Figura 7 – Gravura de 1568 representando um fabricante de pergaminho.

Fonte: On-line Reference Book for Medieval Studies.


   Um tipo especial e pergaminho, chamado velino, era o que utilizava o couro de animais muito jovens como matéria-prima, especialmente a partir dos séculos III e IV d.C. Eram utilizadas peles de bezerros (vitelo) ou de cabritinho, ou então de bezerros e cordeiros natimortos. A partir daí, o termo pergaminho se referia ao material mais comum, e velino ao pergaminho  dequalidade superior. Esse material era relativamente caro, e para a ma- nufatura de uma Bíblia manuscrita era necessária a pele de cerca de 300 ovelhas. 16 Manuscritos tais como o famoso Codex Sinaiticus (Manuscrito Sinaítico) e o Codex Vaticanus (Manuscrito Vaticano N.° 1209), do quarto século d.C., são códices em pergaminho, ou   velino.

    Depois do século II a.C., o pergaminho continuou a ser utilizado, atingindo seu maior consumo durante a Idade Média. No século IV d.C. já passa a superar o papiro. É possível que Gutenberg tenha utilizado velino em trinta a trinta e cinco cópias da Bíblia que ele produziu. Isso exigiria cerca de cinco mil couros de bezerro, o que demandou uma enorme mão-de-obra 17.

    Por sua consistência mais firme que a do papiro, os pergami- nhos podiam ser raspados para serem reutilizados, prática adotada especialmente a partir dos séculos VII e VIII d.C. Esse material rea- proveitado era chamado de palimpsesto (do grego pa.lím=novamente, pse.stos=raspado), e está ilustrado na figura 8. Com tratamento químico  adequado,  a  escrita  raspada  pode  ser  restaurada,  o  que permitiu acesso a documentos importantes, como o palimp- sesto bíblico Códice Ephraemi Syri,  do  quinto  século d.C.


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Figura 8 – Palimpsesto, parte do Códice Ephraemi da National Library in Paris, contendo Mateus 20:16-23. 

Fonte: Univesity of Oxford. Plate XXIV. The S.S. Teacher’s Edition: The Holy Bible.


Finalmente, o terceiro dos materiais fundamentais de escrita é o papel. Muitas vezes o papiro é referido como papel, ou papel de papiro, uma vez que  utiliza  fibras  vegetais  nasua fabricação. Entretanto, a maioria dos historiadores concorda que a invenção do papel na forma aproximada como nós a conhecemos hoje tenha sido anunciada na China pelo cortesão T’sai Lun, no ano 105 d.C.. Na ocasião, ele juntou fragmentos de amoreira, bambu, tecido, e outros materiais fibrosos numa tina com cal e água. Na pasta formada, submergiu um tecido emoldurado, semelhante a uma peneira, que ficou coberta com uma camada da pasta. Esta peneira, ou fôrma, permitindo que a água escorresse, deixava remanescer uma folha fina, que era re- colhida e estendida sobre uma mesa. Várias dessas folhas empilhadas, separadas por algum material, eram prensadas para a remoção final da água e postas para secar individualmente, em muros aquecidos. As folhas eram então polidas para ficarem adequadas para a escrita. 18

O processo de fabricação do papel ficou guardado por séculos na China, e foi introduzido na Coréia, em 604 e no Japão apenas em 610. Daí espalhou-se pela Ásia Central e Tibet. Em 751, os árabes, em sua expansão para o oriente, travaram a Batalha de Talas, pelo controle da Ásia Central. Conforme alguns historiadores, entre os prisioneiros chineses, dois eram conhecedores da técnica de fabricação de papel, e estabeleceram um moinho na cidade de Samarcanda. Os árabes levaram a técnica para seus territórios e estabeleceram moinhos para a produção de papel em Bagdá, Damasco, Cairo, e depois, Marrocos, Espanha e Sicília. No século XIII, da Espanha islâmica o papel era exportado para a Itália, e já em 1276 consta a instalação de um moinho para produção de papel em Fabriano, Itália, em 1189 na França e na Alemanha em 1396. Esse percurso está indicado na figura 9. Os fabricantes italianos aprimoraram a técnica de fabricação e obtiveram um papel de qualidade superior que a dos árabes.


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Figura 9 – A migração da tecnologia de fabricação do papel. 

Fonte: HQPAPERMAKER. The History of the Paper.


Com a difusão do livro, o consumo de papel aumentou vertigi- nosamente. No século XVI os holandeses fizeram uma contribuição importante por inventarem uma máquina que transformava trapos em fibra para a produção da polpa, que acelerou o processo de fabricação, permitido a produção em massa de papel. Em 1710, o naturalista francês Reaumur sugere o uso de madeira para a confecção do papel, e em 1840, na Alemanha, é desenvolvido um processo para a trituração da madeira, constituindo o que se chamaria “pasta mecânica”, ou celulose. 19

A fabricação atual do papel pode ser dividida em cinco grandes etapas: (1) geração e estoque de cavacos de madeira; (2) fabricação da polpa, por meios mecânicos, químicos ou reciclagem; (3) branquea- mento da polpa; (4) formação da folha e (5) acabamento, onde o papel é cortado nos formatos finais. 20

Atualmente o papel é o principal suporte para o livro. Embora o processo de fabricação tenha sido muito aprimorado tecnologicamente, os princípios são essencialmente os mesmos desde sua invenção. Como advento dos computadores, alguns prognósticos foram feitos no sen- tido de que o consumo de papel diminuiria. Entretanto, pelo menos até agora, o consumo de papel aumenta anualmente. Como, além disso, sua fabricação consome muitos recursos naturais, ela é constante alvo de preocupação ambiental. Os números variam, dependendo do processo de fabricação e tipo de papel, mas um valor estimativo é que para a produção de uma tonelada de papel de impressão consome-se cerca de 24 árvores adultas. O consumo de água é considerável, podendo chegar a 250 mil litros de água para cada tonelada de papel   produzido.

Quanto às formas em que esses três materiais foram montados, são duas as principais: o rolo e o códice. O rolo foi a forma comum      do livro por cerca de três milênios. Era obtido pela junção de várias folhas de pergaminho ou papiro, de modo a se obter uma tira, de cujo comprimento dependia a capacidade de armazenagem de texto do rolo. Nos de comprimento menor, um pedaço de madeira era fixado numa das extremidades da tira, e esta era enrolada sobre ele. Nos de comprimento maior, em ambas as extremidades eram fixados cilindros de madeira, e a tira era enrolada em ambos, em direção ao meio. Nos dois casos, a leitura exigia o uso de ambas as mãos, uma desenrolando e outra enrolando ao passo que o trecho era procurado ou lido. Esse rolo era chamado de  volume.

Sobre as dimensões usuais dos rolos, a obra Estudo Perspicaz das Escrituras explica:

“Um tamanho comum das folhas usadas para fazer rolos era de 23 a 28 cm de comprimento por 15 a 23 cm de largura. Diversas destas folhas eram coladas uma na outra, lado a lado. No entanto, as folhas do Rolo do Mar Morto de Isaías, do segundo século AEC, foram cos- turadas com fio de linho. O rolo foi feito de 17 tiras de pergaminho, com a média de 26,2 cm de altura, e variando em largura de cerca de 25,2 cm a 62,8 cm, no total de 7,3 m de comprimento no seu atual estado de preservação. O comprimento usual dum rolo, no tempo de Plínio (provavelmente os vendidos comercialmente), era de 20 folhas. Um rolo de papiro egípcio, que narra o reinado de Ramsés II, chamado de Papiro Harris, tem 40,5 m de comprimento. O Evangelho de Marcos teria exigido um rolo de 5,8 m de comprimento; Lucas, cerca de 9,5 m... As 17 tiras do Rolo do Mar Morto de Isaías contêm 54 colunas de texto, tendo em média umas 30 linhas por coluna.” 21

Os rolos eram armazenados em caixas de madeira ou prateleiras, com uma etiqueta identificando seu conteúdo.

Com relação à prática da leitura, o rolo permite um amplo alcance visual de uma porção maior do texto, em comparação com as páginas de um livro moderno. De fato, alguns pesquisadores defendem seu   uso por entenderem que o formato permite maior melhor compreen- são do conteúdo 22. Por outro lado, a consulta a partes alternadas do texto é muito difícil, adequando-se mais à leitura seqüencial. Com normalmente um dos lados apenas era utilizado, o rendimento quando à capacidade de armazenamento também não é  elevada.

De certo modo, o formato do rolo foi retomado por várias mídias no século XX. Os créditos no final das apresentações cinematográficas são apresentados como que num rolo desenrolado verticalmente. A tela dos computadores também usa essa disposição, e nos referimos ao seu movimento vertical como “rolar a tela”, numa clara alusão ao rolo original. O hipertexto, descrito adiante, supera a limitação de consultas paralelas, apresentada pelo rolo.

A segunda principal montagem tradicional do texto escrito é o códice, cuja popularização ocorreu no século I d.C. Sua operação re- solvia muitas das limitações do rolo, especialmente a possibilidade de iniciar a leitura de qualquer ponto e poder recorrer a vários trechos do texto com rapidez. Já se utilizavam tábuas empilhadas e unidas de um modo que lembra o formato de um códice. A substituição das tábuas de argila por folhas de pergaminho ou papiro foi um desenvolvimento natural. A figura 10 ilustra o Codex Vaticanus, segundo alguns pesquisadores, a mais antiga Bíblia completa em grego existente, produzido na primeira metade do século   IV.

Um códice consistia de um conjunto de folhas dobradas e costuradas pelas dobras. Inicialmente, as folhas eram apenas dobradas ao meio, gerando um caderno de duas folhas. Esse tamanho se chamava infolio. As folhas podiam ser dobradas novamente, gerando cadernos de 4 folhas, de tamanho menor, chamados in-quarto. Daí, sucessivamente, temos os in-octavo, e outros formatos menores. Gutenberg, ao imprimir a Bíblia, utilizou fólios de 43 cm x   62 cm em formato final in-quarto, de modo que o tamanho dos volumes encadernados é de aproximadamente 31 cm por 43 cm. Os formatos maiores seriam reservados para as bibliotecas, ao passo que os menores para uso pessoal. As dimensões das folhas dobradas foram tornadas oficiais no século XVI. Na França, um decreto de Francisco I, em 1527, punia com prisão os que violassem os tamanhos padronizados. 23

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Figura 10 – O Codex Vaticanus, um exemplo do formato de códice, cuja adoção data do século I.

Fonte: Institute for Antiquity and Christianity.


Os códices usavam normalmente pergaminho ou velino como material das folhas. Visto que ambos os lados eram utilizados a ca- pacidade de armazenamento do códice era superior ao do rolo. Por exemplo, seria preciso um rolo de 31,7 metros para conter os quatro evangelhos, ao passo que um só códice poderia conter os quatro, facilitando tanto o transporte como o estudo. Conforme veremos,  essas características eram especialmente atraentes aos Cristãos do primeiro  século. Conforme autores como Chartier, Cavallo, Labarre e Poirier, essa terá sido uma revolução na prática da leitura de proporções maiores do que a invenção de Gutenberg, vários séculos depois. Uma razão apresentada por Chartier é que “um livro manuscrito... e um livro pós-Gutenberg  baseiam-se  nas  mesmas  estruturas   fundamentais – as do códex”. Assim, prossegue ele, referindo-se à imprensa, “há... uma continuidade muito forte entre a cultura do manuscrito e a cultura  do  impresso” 24.

Nessa mesma linha de raciocínio, Labarre, afirma:

Entre os séculos II e IV da nossa era, foi suplantado progressivamente pelo codex, feito e folhas encartadas e dobradas para constituírem cader- nos juntos uns aos outros. Desde esta época, o livro conservou sempre esta forma; mas a nossa língua dá à palavra volume um sentido que se afasta das suas origens. Trata-se de uma mutação capital da história do livro, talvez mais importante que aquela a que o submetera Gutemberg, porque ela atingia o livro na sua forma e obrigava o leitor a mudar completamente a sua atitude física. A consulta de um volumen  era  pouco prática; era necessário desenrolá-lo lateralmente ante si, sendo difícil reportar-se de uma parte a outra do texto. Era incômodo e tinha  de ser segurado com ambas as mãos, o que não permitia tomar notas     da leitura, como mais tarde se fará.    25

    Cavallo explica que “as práticas de leitura sofrem profundas transformações, e o códice provoca uma modificação na própria noção de ‘livro’”. A mudança chega a ser motora, já que o livro liberta uma das mãos do leitor, habilitando-o a fazer anotações no texto, o que aumenta potencialmente sua interação. Além disso, ao invés de um panorama contínuo, agora o leitor tinha diante de si uma porção finita e claramente delineada pela página. Ele  analisa:

O códice tornara-se pouco a pouco, mesmo com as necessárias nuan- ças, o instrumento da passagem de uma leitura “extensiva” de muitos textos, difundidos entre um público variado e estratificado,... a uma leitura “intensiva”, de poucos textos, sobretudo a Bíblia e o Direito, lidos, relidos, retomados em forma de citação e fórmulas, textos deco- rados, recitados. Na Antiguidade tardia é nesses escritos, e, portanto, no livro e na leitura, que se baseia toda a autoridade: no vértice do poder, entre as hierarquias eclesiásticas, na sociedade leiga, no interior no núcleo familiar. E havia somente o códice, portanto, para representar essa autoridade. 26

    Enfatizando ainda a importância do advento dos códices, Chartier afirma que  estes  “transformaram  profundamente  o  uso  dos  textos. A invenção da página, as localizações garantidas pela paginação e pela indexação, a nova relação estabelecida entre a obra e o objeto que é o suporte de sua transmissão tornaram possível uma relação inédita entre o leitor e seus livros”   27.

    As considerações feitas até aqui sobre os principais materiais e suportes do texto escrito serão importantes para os tópicos a seguir, referentes ao histórico do desenvolvimento das práticas de  leitura.


15 KATZENSTEIN, Ursula Ephraim. A origem do livro, p.    170.

16 HQPAPERMAKER.  The  History  of  the  Paper.

17 MAN, John. A Revolução de Gutenberg, p. 173.

18 KSR. História do Papel.

19 ARACRUZ. História do  Papel.

20 CELULOSE ONLINE. Processo de Fabricação do Papel.

21 Estudo Perspicaz das Escrituras. Vol. 2, p. 710.

22 TEXTMAPPING PROJECT. The Use of Scrolls in  Education.

23 FRANCISCO I. Letteres de François I au Pape. Paris, 1527. Apud MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura, p. 152.

24 CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador, p.   9.

25 LABARRE, Albert. História do Livro, p. 13.

26 CAVALLO, Gugliemo. Entre o Volumen e o Codex. In CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER,  Roger.  Op.  cit.,  p.  94.

27 CHARTIER, Roger. Os Desafios da Escrita, p. 106.

28 Estudo Perspicaz das Escrituras. Vol. 2, p. 687.


Introdução <—Sumário—> 2. Referências bíblicas à prática da leitura



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