Introdução

A leitura está tão vinculada ao homem e sua história, que é praticamente impossível dissociá-los. Ela é considerada a voz da civilização, seja a leitura dos sinais gravados por um escriba egípcio em papiro há 4000 anos, seja dos bilhões de caracteres por segundo que circulam na atual imensa teia de comunicação, e que eclodem nas telas dos computadores. O que torna possível que aqueles sinais ou esses caracteres desafiem, capacitem, encantem ou enriqueçam é o objeto temático de estudo desse trabalho: a leitura.

Embora em uma primeira análise a prática da leitura pareça um conceito de contorno claro e imutável, a observação de sua história evidencia que esse não é o caso. Por exemplo, no passado a leitura era feita predominantemente em voz alta, e a leitura silenciosa, ao ser descoberta, trouxe à prática uma das mudanças mais marcantes. De modo similar, temos hoje uma prática de leitura caracterizada pela não-linearidade e pela fragmentação face ao enorme volume de informação, contrapondo-se à leitura caracteristicamente linear de períodos anteriores. E se nos períodos iniciais verificamos uma atitude mais contemplativa do leitor, em tempos recentes o potencial de sua interação com o texto é muito maior, dados os recursos hipermidiáticos disponíveis.

O problema investigado neste trabalho é, portanto, a identificação e caracterização dessas práticas de leitura em vários momentos históricos, com vistas a entender o perfil do leitor que está surgindo face à intervenção tecnológica no mundo da leitura, que vivenciamos notadamente desde o advento da Internet.

Desde o surgimento da escrita, os suportes materiais usados para contê-la tomaram diferentes formas. Foram usados também em diversos contextos históricos e sociais. Mais recentemente, os desenvolvimentos tecnológicos trouxeram grandes mudanças nas formas de apresentação do texto escrito. As novas mídias eletrônicas permitem uma interação sem precedentes do leitor com o texto, possibilitando o surgimento de novas práticas de leitura. A investigação da influência do suporte da escrita e do contexto histórico nas práticas de leitura é o tema desse trabalho.

O objetivo de identificar várias práticas de leitura através do tempo e discutir sua relação com o momento histórico e suportes utilizados é o auxílio na compreensão do fenômeno da leitura e as práticas adotadas pelas sucessivas gerações de leitores. A leitura está tão ligada ao homem, que muitos autores a consideram como uma aptidão natural. Como tal, sua definição é complexa e variável, ganhando novas acepções ao passo que diferentes práticas de leitura surgem. Os meios digitais representam uma nova revolução nessas práticas, atraindo a atenção dos que as pesquisam, e demandando constantes reavaliações.  Ao identificar as práticas de leitura através do tempo, a pesquisa buscará fazê-lo de modo acessível tanto aos leitores mais ligados às humanidades quanto aos mais ligados às novas tecnologias.

Além disso, não são poucos os prognósticos de que vivenciamos o fim do livro como suporte do texto ou pelo menos o apontamento de uma suposta concorrência entre livro e tela, entre texto e imagem. Assim, outra razão para uma análise histórica é lançar luz sobre esse debate no esforço de encontrar elementos que permitam matizá-lo de modo cada vez mais acurado. O trabalho tratará de como se fundem a história da leitura com os suportes do texto e quais as características das formas de leitura; como a crescente presença da tecnologia no compartilhamento do conhecimento tem contribuído para a prática da leitura; qual é o perfil do novo leitor e que motivações mentais guiam os interesses do leitor quando este se movimenta nas novas formas do texto.

Dada a amplitude do tema, seu escopo se limitará em três aspectos, explicados a seguir. Inicialmente, a expressão “ler” tem sido utilizada com uma grande amplitude de significados. É natural que a relacionemos inicialmente com o ato de reconhecer os caracteres impressos num suporte, compô-los mentalmente e colher deles um significado. Além desse significado, porém, encontramos freqüentes referências à “leitura da imagem”, e até sentidos mais conotativos, como quando falamos da “leitura” que fazemos de uma situação, de um conjunto de dados, de um acontecimento ou até de uma paisagem. As diferenças entre essas várias formas de leitura têm sido objeto de extensivas considerações dos estudiosos e vai além dos limites dessa pesquisa, bastando nesse momento esclarecer que ela está focalizada na leitura de textos.  Ainda nesse contexto, o termo “práticas” aqui se refere às atitudes individuais do leitor, isso é, seu modo particular de apropriar-se do texto, quer pessoalmente quer em grupo, e não à disseminação da leitura ou seu alcance, do ponto de vista populacional, embora referências à abrangência da prática sejam feitas pontualmente.

Em segundo lugar, o trabalho focalizará os aspectos históricos ocidentais, com breves referências a desenvolvimentos no oriente europeu. Apresenta a contribuição de algumas culturas consideradas mais relevantes na história da leitura, e cujas conseqüências ainda se verificam quase mundialmente.

Finalmente, quanto ao período abordado, embora a invenção da imprensa de tipos móveis por Johannes Gutenberg sempre venha à mente quando o tema história da leitura, ou mais propriamente, história do livro, é suscitado, o trabalho não o estabelece como marco inicial. Conforme veremos, se o advento da imprensa proporcionou uma revolução da página impressa como a conhecemos e da sua disponibilidade, do ponto de vista individual da leitura ela representou uma continuidade em relação aos códices manuscritos, imitando-os, de fato, em seu formato. Assim, uma análise histórica das práticas da leitura ficaria incompleta sem a consideração dos elementos que lhe deram origem, particularmente o rolo e o papiro, e seu contexto. Além disso, o advento da imprensa ocorreu num ambiente em que a leitura já tinha uma longa história, cuja herança transportou-se para o mundo que ela, a imprensa, inaugurou. Ressalte-se que a leitura já era praticada há mais de 5 milênios quando do surgimento da imprensa.

Há que se notar que o fio condutor e limites eleitos dessa disseração não são únicos, tendo sido escolhidos não em detrimento de outras possíveis análises, mas para fins de delimitação de um tema de tamanha abrangência.

O trabalho consistirá de um ensaio teórico, com um exame argumentativo frente à temática. Para tanto, sua metodologia constará de uma revisão bibliográfica de estudiosos do tema e também de documentos e fontes mais recentes, em especial os disponíveis no ambiente de leitura analisado no final do trabalho: a Internet. A pesquisa buscará da história elementos essenciais que compõe o desenvolvimento das práticas de leitura. Mais que apenas uma abordagem cronológica, apontará marcos importantes nessa trajetória, como o contexto de surgimento de diferentes materiais, desde o papiro a até o papel eletrônico, e desde o rolo até as telas digitais.

O livro está estruturado em três capítulos. O primeiro analisa o período histórico anterior a Gutenberg. Inicia com uma consideração sobre os principais materiais usados para o suporte do texto, uma vez que estiveram presentes por muitos séculos na história da leitura. A seguir, passa à abordagem dos desenvolvimentos considerados de maior relevância, iniciando com as referências bíblicas à prática da leitura, daí às transformações nas culturas grega e romana, concluindo com as importantes evoluções na Idade Média, tanto na fase monástica como na fase escolástica.

O segundo capítulo, iniciando do Renascimento, com o importante marco histórico da invenção da imprensa, percorre as sucessivas transformações que a multiplicação da página impressa ocasionou na prática da leitura. Aborda seus impactos nos movimentos religiosos da Reforma e Contra-Reforma, na divulgação dos conhecimentos científicos e na popularização da leitura, até os desenvolvimentos tecnológicos que culminaram com o advento das tecnologias computacionais.

O último capítulo aborda a leitura já em ambiente digital. Descreve o surgimento dos computadores e da Internet, elementos fundamentais na nova estrutura de suporte ao texto escrito em consideração nessa pesquisa. A seguir, apresenta algumas das importantes formas do texto nesse ambiente, particularmente o hipertexto e o texto eletrônico, e, finalmente, que práticas já podem ser identificadas nos leitores dessas novas mídias.


Sumário <—————> I. Práticas de leitura até Gutenberg

© Marco A. Simões 2020