II - De Gutenberg aos computadores

1. Leitura no Renascimento

“Renascer”, “ressurgir”, era a ideia que ganhava terreno na Itália, na época do pintor Giotto di Bondone (1266 – 1337). Giotto, nas artes, foi um dos protagonistas da busca a um passado distante, da ressurreição da grandeza da Roma de antes das invasões germânicas, da Roma que era o centro do mundo civilizado. Voltaram os olhos com orgulho para o passado, para uma idade clássica à qual havia se interposto um “período médio”, gótico, de influências bárbaras, vândalas, palavras que até hoje associamos à destruição inútil de coisas belas.

De nosso ponto de observação atual, a visão acima é, sem dúvida, um quadro muito rudimentar e simplificado do curso dos acontecimentos. As mudanças históricas são muito graduais, e imbricam-se por considerável tempo. Entretanto, é possível identificar claros sinais da busca descrita acima, e as produções e desenvolvimentos posteriores mostraram que se tratava de uma tendência concreta. As obras de Giotto, por exemplo, foram consideradas uma grande inovação, por isso ele ser considerado o precursor da pintura renascentista. Por exemplo, diferente das feições etéreas e indefinidas das representações dos santos da Idade Média, as representações de Giotto buscam formas humanas de aparência comum, seus personagens ocupando sempre a posição de destaque na obra – bem de acordo com o pensamento humanista.

Para ilustrar a mudança que se verificava, seguem-se duas obras representando artisticamente um mesmo acontecimento. Observa-se, no primeiro caso, figura 18, que o artista abriu mão da realidade dimensional para que todos os personagens coubessem na cena, diferente da segunda, na figura 19, onde Giotto proveu ar e espaço entre todos. Compare-se também, no primeiro caso, o gesto de luto de João que é bastante convencional e impessoal com a reação bem mais espontânea e humana do João representado por Giotto. Igualmente, observa-se uma representação mais “terrena” da dor conforme manifesta nas expressões das figuras. Finalmente, o grande recurso que marcou decisivamente a obra de Giotto: a sensação de profundidade através da utilização da perspectiva. Embora fosse errôneo supor que essa separação tenha ocorrido de um dia para outro, diante de trabalhos como este, a velha maneira bizantina passou a parecer, de súbito rígida e obsoleta. [1] 

Figura 18 – O Sepultamento de Cristo c. 1250, de um saltério manuscrito. [2]

Figura 19 – A Lamentação de Cristo

Giotto di Bondone, c. 1305. [3]

A tomada de Constantinopla pelos turcos Otomanos contribuiu decisivamente para essa tendência. As monarquias inglesa, francesa e castelhana adquiriam um caráter mais autoritário, já configurando um aparelho estatal que se consolidaria na Idade Moderna. Com a tomada de Constantinopla em 1453, a burguesia europeia precisou buscar novas rotas comerciais pelo Oeste, induzindo o desenvolvimento de novas técnicas de navegação e busca de novos mundos. Ao mesmo tempo, o pensamento e a expressão artística rejeitavam os traços medievais e buscava inspiração em fontes originais da Antiguidade. Esse legado medieval e essa busca pela cultura grega e latina alimentavam o surgimento do Renascimento.

Nesse ambiente, a religiosidade humanista busca chegar a Deus, sobretudo por meio do exercício da razão. Na escolástica entendia-se que o celeste dava sentido ao terrestre – agora o terrestre é que daria sentido ao celeste. Autores como Francisco Petrarca (1304 – 1374) e Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), autor de Decameron, admitiam a busca das soluções para os problemas, inclusive filosóficos, em qualquer fonte, mesmo as consideradas “pagãs”. O homem devia pensar por si mesmo sem tutelas.

Esse é um traço marcante da prática da leitura no humanismo. Na visão humanista, os leitores medievais lembravam as catedrais góticas: necessitavam sustentar as obras clássicas com um conjunto de paredes e contrafortes de títulos, comentários e tratados. Relativamente pouca importância era dada ao contexto geográfico ou histórico do autor. No sistema escolástico, o elemento de ligação entre os textos era muito mais as extensas glosas, do que o contexto da obra. Os humanistas não só discordavam dessa forma de abordar os clássicos, como discordavam das próprias glosas e comentários em si. Na visão deles, as obras haviam sido produzidas por pessoas de certa época e lugar. Conforme explica Grafton “[os humanistas] trataram os livros não como ingredientes a partir dos quais poderiam vir a construir um sistema moderno de ideias, mas como a janela através da qual poderiam dialogar com os mortos ilustres” [4].

Essa autonomia do leitor na prática da leitura e essa liberdade para decidir o que, como, e quando ler são bem ilustradas numa carta de Maquiavel a seu amigo Francesco Vettori, de 10 de dezembro de 1513. Na ocasião, ele estava exilado em sua fazenda, fora de Florença, por suspeita de conspiração. Ele escreve:

Saindo do bosque, vou a uma fonte e de lá a um viveiro de pássaros. Levo comigo um livro embaixo do braço, de Dante ou Petrarca, ou de um desses poetas menores como Tibulo, Ovídio ou qualquer outro: mergulho na leitura de seus amores e seus amores lembram os meus; pensamentos que me recrio no momento certo. Em seguida, ganho a longa estrada: entretenho-me com os que passam, peço notícias de seu país, imagino tantas coisas, observo a variedade de gostos e a diversidade de caprichos dos homens [...} A noite cai, retorno aos meus aposentos. Entro em meu quarto e, já na soleira, despojo-me do hábito de todo dia, coberto de lodo e lama, para vestir os mantos da realeza e do pontificado; assim, adornado com todo o respeito, entro nas cortes antigas dos homens da Antiguidade. Lá, acolhido por eles com afabilidade, sacio-me do alimento que é meu por excelência e para o qual nasci. Nenhuma vergonha de falar com eles e perguntar-lhes sobre os motivos de suas ações e eles, em virtude de sua humanidade, me respondem. E, durante quatro horas, não sinto o menor tédio, esqueço meus tormentos, deixo de acreditar na pobreza e nem mesmo a morte já me assusta. [5]

Há muito que aprender sobre práticas de leitura nessa pequena carta. Inicialmente, Maquiavel descreve-se como leitor de dois tipos muito diferentes. O primeiro, busca na leitura o reflexo de seus próprios amores, muito mais para o devaneio do que para o pensamento, na qual o leitor poderia se perder sem culpa. O formato do livro é certamente adequado para uma leitura ao ar livre (“embaixo do braço”). A vívida descrição lembra-nos muito as leituras realizadas hoje à beira da praia – livros menos clássicos talvez, mas que provêem um meio eficiente para fugir dos problemas. Os poetas citados por Maquiavel são Tibulo (54 – 19 a.C.) e Ovídio (43 – 17 a.C.).

O outro leitor descrito por ele é completamente diferente. A leitura, realizada agora na biblioteca, é descrita como um encontro solene com grandes autores, com os quais temas de muito maior profundidade serão debatidos. É certo que agora não são utilizadas as práticas edições de bolso, já em voga na época. Nos gabinetes de leitura dos intelectuais da Renascença encontravam-me os grandes in-folios. Mas a atitude, o estado de espírito, do leitor é que ganha destaque na descrição. A busca não é por distração, mas por instrução, provavelmente de Cícero, Plutarco, Lívio e Tácito.

As duas descrições das práticas de leitura adotadas por Maquiavel não pretendem excluir outras possíveis. É possível que um leitor abordasse Tibulo e Cícero com a mesma solenidade com que Maquiavel consultava Cícero. Naturalmente, é mais difícil imaginar que alguém leria Cícero para devaneio ou simples deleite, embora houvesse. Hieronymus Münzer [6] anotou em sua cópia de Corpus hermeticum [7] que “se deliciava com aquela que era a mais doce entre as leituras”. O mais importante é a liberdade do leitor manifestada na carta – talvez essa sendo a característica mais importante do leitor humanista. Conforme explica Grafton, “[e]m cada caso, o leitor, do mesmo modo que Maquiavel, adotaria uma postura física e uma atitude mental específicas a serem aplicadas a determinado texto de sua escolha [8].

Essa atitude para com a prática da leitura influenciou o formato do livro e os ambientes de leitura também. Os caracteres góticos caíram em desuso, substituídos por outros mais arredondados e suaves. Livros menores foram produzidos, para facilitar seu uso fora das salas de leitura, como no caso de Maquiavel. Petrarca, em 26 de abril de 1316 escalou o Monte Ventoux (1909 metros de altitude), e levou consigo sua edição de bolso de Confissões de Agostinho até o topo do morro. [9] Ele relata numa carta ao seu amigo Francesco Dionigi, que lhe ocorreu olhar na cópia de Confissões. Diz ele que “onde eu fixei meus olhos primeiro estava escrito ‘os homens saem para admirar a altura das montanhas, as poderosas ondas do mar, a grandeza dos rios, o compasso do oceano, os percursos das estrelas, contudo passam sobre os mistérios de si mesmos sem lhes dedicar nenhuma atenção’” [10]. Esse testemunho nos revela não só a importância do formato concreto do livro, mas também o significado que a leitura tomou, concatenando-se com um momento de contemplação de profundo significado filosófico.

Ao lado dessas novas posturas no mundo artístico e na prática da leitura, ao longo do Renascimento uma enorme quantidade de ideias originais surgiu no campo da ciência e da tecnologia. Leonardo da Vinci, Nicolau Copérnico, Giordano Bruno, Johannes Kepler, Galileu Galilei, são alguns nomes nessa galeria onde muitas dessas ideias nasceram e frutificaram. Além de originais, as ideias no Renascimento eram interdisciplinares, refletindo a ambição de integração desses pensadores.


[1] GOMBRICH, E.G. A História da Arte, p. 208-212.

[2] Fonte: GOMBRICH, E.G. A História da Arte, p. 195.

[3] Fonte: GOMBRICH, E.G. A História da Arte, p. 203.

[4] GRAFTON, Antony. O Leitor Humanista. In CAVALLO, Guglielmo. CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 8.

[5] MAQUIAVEL, Nicolau. Apud GRAFTON, Antony. Op. cit., p. 5.

[6] Hieronymus Münzer, (1437 – 1508, Nurenberg), médico e humanista, viajou extensamente pela Europa e escreveu longos relatos, contribuindo com a divulgação de literatura sobre viagens. Expoente intelectual e possuidor de uma grande biblioteca.

[7] Corpus Hermeticum: conjunto de textos escrito entre 300 e 100 b.C. no Egito, que resulta de um complexo sincretismo religioso, de múltipas influências.

[8] GRAFTON, Antony. Op. cit., p. 9.

[9] Petrarca, pelo retrato vívido e detalhado da escalada, é considerado o pai do alpinismo

[10] PETRARCA, Francisco. Letters. Tradução livre.

© Marco A. Simões 2020