2. A imprensa de Gutenberg | História da Leitura

2. A imprensa de Gutenberg

No estudo das práticas de leitura, o acontecimento tecnológico mais importante dessa época, sem dúvida, é a invenção da imprensa de tipos móveis, por Johannes Gutenberg (1398 – 1468). É certo que nem todos os fatos relacionados à vida e trabalho de Gutenberg são bem documentados ou encontram unanimidade entre os pesquisadores, mas os mais relevantes contam com respaldo suficiente no que se referem à importância histórica de seu invento e seu impacto sobre as práticas de leitura.

Gutenberg nasceu em Mainz, Alemanha, por volta de 1398. Não há informações sobre o tipo de educação que recebeu, mas os fatos posteriores em sua vida mostram que era bem instruído. Em Mainz havia muitas escolas, nas quais eram ensinados o latim e a escrita com letras maiúsculas e minúsculas, além do sistema numeral dos árabes, que os tradicionalistas não aprovavam. A situação na cidade, porém, não era pacífica devido a rivalidades entre grupos e problemas com impostos. O pai de Gutenberg achou por bem sair da cidade em 1415, à qual Gutenberg retornou em 1420, após ter estudado provavelmente em uma das cinco universidades de língua alemã da época.

Em seu retorno, deu-se um de vários acontecimentos que concorreram para a futura invenção da imprensa. Nessa época, o Rei Sigmund havia determinado a fabricação de moedas em Mainz. A fabricação de moedas exige a confecção de uma punção, isto é, um componente mecânico feito de um aço endurecido por um processo de têmpera recém desenvolvido. Antes de ser temperado, a punção receberia uma fina gravação de relevo com a imagem desejada para a moeda. Após a têmpera, essa punção era martelada contra uma superfície metálica mais mole, o que deixaria nela uma impressão espelhada da punção. Estando prontas as duas faces da matriz, que constituiriam a moeda, elas eram colocadas juntas, e o ouro ou prata fundidos era colocado dentro da matriz (ou molde). Gutenberg havia convivido com fabricantes de punções. Cunhar moedas era o trabalho de vários membros de sua família e outros com quem ele dividiu sua casa enquanto jovem. Não há evidência de que Gutenberg tenha pessoalmente trabalhado no desenho ou fabricação das novas punções demandadas pelo decreto de Sigmund. Porém, é certo que ele teve contato com a técnica, e sabia quem detinha o conhecimento de realizar a tarefa, conhecimentos esses que lhe foram úteis posteriormente, quando da invenção da imprensa. [1]

Os registros disponíveis dão conta de poucos progressos em sua vida pessoal nos anos seguintes. A cidade de Mainz apresentava novamente tensões internas, e a Peste Negra causava intermitentes períodos de grande desassossego e insegurança. Já próximo de trinta anos e com forte inclinação negociante, herdada em grande parte de sua mãe, Gutenberg, em 1429 decide deixar Mainz e estabelece-se em Estrasburgo, provavelmente por ligações familiares. Lá, empenhou-se nos próximos anos em muitas articulações que tinham um objetivo claro: reunir um considerável capital, para algo que ele tinha em mente.  Este projeto também acabou constituindo mais um passo em direção à invenção que o imortalizaria.

Esse acontecimento decorre de uma prática religiosa, que levava milhares de peregrinos até a cidade de Aachen, em cuja catedral jazia o corpo do fundador do império, Carlos Magno, assim como outras relíquias, que se tornaram o foco de uma das maiores peregrinações medievais. A procura aumentou até que em meados do século XIV as autoridades formalizaram a exibição a cada sete anos. Em 1432, dez mil pessoas se amontoavam fora da catedral, onde agora as relíquias eram expostas. Houve tumulto com dezessete mortos e uma centena de feridos. A causa desse interesse especial deveu-se a um boato. Antes de mencioná-lo é importante lembrar que, a par da religiosidade, havia também uma crescente confiança na tecnologia.

Pois bem, espalhou-se que, um espelho convexo, conforme explica Man, “ao capturar um ângulo de visão mais amplo, poderia absorver a radiação das relíquias sagradas. De repente, todos queriam um distintivo com um espelho... de metal polido, em sua moldura de cobre ou chumbo, com suas grosseiras e emblemáticas figuras.” Uma vez adquirido o espelho, bastava permitir que ele fosse tocado pelos raios da santidade, e podia-se então levá-lo para casa, onde seus efeitos perdurariam.

Curiosamente, data de 1434 um óleo de Jan van Eyck, O Casamento dos Arnolfinis, ilustrado na figura 20, em que se pode ver um desses espelhos numa posição de destaque na obra. Incidentalmente, a obra é uma representação expoente do renascentismo, na qual o Eyck renuncia aos padrões góticos e usa a tela para documentar um acontecimento com a maior fidelidade. Um olhar cuidadoso no espelho mostra que Eyck representou-se no quadro.

Figura 20 – O Casamento dos Arnolfini, óleo de Jan van Eyck, 1434, mostrando ao fundo um exemplo de espelho convexo, a cuja produção Gutenberg dedicou-se. [2]

 

Ocorre que os produtores locais não conseguiam produzir espelhos na quantidade demandada. Facilmente, Gutenberg enxergou aí uma ótima oportunidade de negócios: ele iria produzir espelhos em massa para a peregrinação de 1439. Sua expectativa era produzir trinta e dois mil espelhos. Como cada espelho custava cerca de 50 libras, num cálculo simples, ele poderia faturar mais de um milhão e meio de libras. Mesmo considerando o investimento inicial de sessenta mil libras, que ele achou necessário, seria um ótimo negócio.

Havia, porém, dois obstáculos: obter o capital inicial e desenvolver um processo de fabricação em massa, desconhecido então. Nesses obstáculos está a relação desse episódio com a invenção da imprensa. Essencialmente, os espelhos precisam de uma prensa para sua fabricação, com um processo de estamparia que guarda muita semelhança à impressão, e os historiadores concordam que essa necessidade foi o ponto de partida, consciente ou não, para o trabalho com os livros. Junte-se a esse fato, a experiência de Gutenberg com a produção das punções para a fabricação de moedas.

Embora haja considerável documentação dos próximos acontecimentos, esta nem sempre é clara e a análise dos detalhes vai além do escopo desse trabalho. De mais significativo, é importante citar que Gutenberg finalmente conseguiu apoio financeiro e iniciou os trabalhos sob grande sigilo. O sigilo foi tal que os sócios passaram a desconfiar de que ele desenvolvia algum projeto paralelo, especialmente pelo fato de o terem visitado sem aviso e terem deixado escrito que ele “conhece uma outra arte secreta”. Além disso, no verão de 1438 a Peste retornou, e as peregrinações foram adiadas para o próximo ano. Talvez a essa altura Gutenberg já teria dado novo rumo às suas ideias, que, entretanto, ainda estariam em estágio simples o bastante para que alguém se apropriasse delas. É possível que, como um empreendedor sagaz, ele tenha feito o máximo para mantê-las em sigilo até que tivesse superado as dificuldades técnicas que vislumbrava. Se este é o fato, ele o fez de tal modo que até hoje não se sabe exatamente os caminhos que ele tomou para resolver os problemas técnicos de seu invento.

Essencialmente, a invenção de Gutenberg baseia-se em quatro componentes principais: punção, molde, componedor e galé. Sua utilização pode ser resumida da seguinte maneira: a punção era um componente metálico com a letra esculpida numa das extremidades, e endurecida pelo processo de têmpera. Ela era usada para cunhar a letra num molde, feito de material mais macio, como o bronze. Uma liga metálica composta de chumbo, estanho e antimônio era despejada sobre o molde, resultando num tipo. Os tipos eram montados num componedor para formar as palavras e linhas do texto. As linhas eram então compostas em colunas, num suporte chamado galé, que era então colocado na base da prensa. A tinta, que constituiu outro desafio técnico que Gutenberg conseguiu resolver, era então espalhada dos tipos presos na galé, e sobre eles a folha de papel, que era então prensada contra os tipos. [3] Esse processo está ilustrado na figura 21.

Tipo e impressão resultante

Conjunto de tipos montados num componedor.

Montagem dos tipos no componedor.

Tipógrafo fundindo uma matriz

Tipógrafos preparando uma caixa de impressão, ou galé.

 

Figura 21 – Aspectos da montagem dos tipos móveis para a impressão. [4]

Houve algumas invenções anteriores para impressão que utilizavam alguns dos princípios acima. Mas a invenção de Gutenberg se destaca por várias razões, uma delas sendo a possibilidade de reutilizar os tipos. Assim, um mesmo conjunto de tipos poderia ser usado para muitas impressões. Além disso, o mecanismo e a tinta que ele desenvolveu permitiu uma qualidade de impressão nunca alcançada.

Concebido o invento, Gutenberg buscava ganhar dinheiro com ele. Muito mais do que um bibliófilo, ele era um empreendedor. Assim sua busca foi imprimir algo que tivesse um bom potencial de mercado. Anos antes, muito provavelmente tomara conhecimento dos esforços de John Wycliffe (1320 – 1384) de tornar a Bíblia disponível à população em geral, no vernáculo, e realizou a primeira tradução da Vulgata Latina para o Inglês entre 1379 e 1382. John Hus (1369 – 1415) apoiou as ideias de Wycliffe, contrariando a posição da Igreja, o que resultou em sua condenação à fogueira.

Portanto, inicialmente a Bíblia não foi considerada uma opção. Poderia criar problemas com a Igreja, e exigiria um grande investimento inicial. Por isso, antes da Bíblia que o tornaria famoso, ele optou por alguns outros trabalhos (uma obra sobre gramática, um missal, indulgências e uma obra chamada Profecias Sibilinas), que, no final, mal pagaram os investimentos. No seio do clero, porém, havia um apoiador à ideia da impressão de uma Bíblia que pudesse ser distribuída a todos os conventos e mosteiros: Nicolau de Cusa. Com sua influência, Gutenberg aceitou o projeto, e novamente, conseguiu obter o capital para investimento. Desta vez, o financiador foi Johann Fust, que custeou o equipamento, papel, velino e os salários dos funcionários. [5]

A descrição desse trabalho magistral, concluído em 1455, vai além do escopo dessa pesquisa, mas a Bíblia de Gutenberg (uma impressão da Vulgata Latina, de Jerônimo), ilustrada na figura 22, assinalou para sempre a história, constituindo o marco inaugurador da página impressa como a conhecemos hoje. No contexto da prática da leitura, vale ressaltar que Gutenberg, prudentemente, não afastou muito a forma da Bíblia da forma dos manuscritos, mais familiar aos seus clientes. Era essencial que, embora o método fosse revolucionário, a forma não fosse, ou pelo menos não parecesse, revolucionário, ou ninguém a compraria. Ao mesmo tempo, deveria superar a beleza e exatidão das Bíblias manuscritas, para que ele despertasse a atenção do mercado.  Assim, seu trabalho é até hoje admirado pelo primor técnico e artístico.

Figura 22 – A Bíblia de Gutenberg. [6]

Foram produzidas 180 cópias, trinta a trinta e cinco em velino e o restante em papel. Cada exemplar impresso foi submetido a um trabalho manual de rubrica e iluminatura, de modo que cada exemplar é único. O trabalho foi concluído em um ano, que é aproximadamente o tempo que levaria para a produção de um único exemplar produzido num scriptorium. Das cópias produzidas, quarenta e oito são conhecidas, vinte delas completas.


[1] MAN, John. A Revolução de Gutenberg, p. 39.

[2] Fonte: GOMBRICH, E.G. A História da Arte, p. 241.

[3] MAN, John. Op. cit., p. 133.

[4] Fonte: The Gutenberg Museum.

[5] MAN, John. A Revolução de Gutenberg, p. 54; GONTIJO, Silvana. Op. cit., p. 182.

[6] Fonte: The Gutenberg Museum.

© Marco Antonio Simoes 2022