3. Consequências da invenção de Gutenberg | História da Leitura

3. Consequências da invenção de Gutenberg

Os impactos da invenção de Gutenberg na prática da leitura são imensos, e até hoje são objeto de estudo. Marshall Mcluhan cita Abbot Payson Usher ao dizer que “a invenção da tipografia, mais que qualquer outra realidade humana,... marca a linha divisória entre a tecnologia medieval e a moderna... Daí por diante, a ‘imaginação’ tenderá cada vez mais a representar o poder da visualização” [1]. Do ponto de vista industrial, a imprensa foi a primeira invenção humana capaz de substituir uma atividade manual, de modo a produzir uma série de produtos de igual qualidade, ou, produção em massa, como chamamos hoje. Com efeito, um ano antes da invenção, um único manuscrito simples tomava um ou dois meses de trabalho de um escriba. No ano seguinte, em uma semana podiam ser produzidas 500 cópias do mesmo livro, todas seguramente iguais. Pouco antes da invenção, todos os manuscritos da Europa somavam alguns milhares. Cinquenta anos depois, os títulos chegavam a dezenas de milhares, com milhões de cópias. [2]

Apesar da ruptura tecnológica representada pela imprensa de tipos móveis, a transformação do livro não é absoluta. Conforme explica Chartier, a construção dos livros pós-Gutenberg tem muito em comum com os livros manuscritos, em suas estruturas fundamentais. Ambos utilizam a montagem no formado de códice, vigente desde os primeiros séculos. Os sistemas de numeração, índice e sumário, os formatos usados no período escolástico (in-folios) e os formatos menores usados pelos humanistas, todos esses elementos permaneceram basicamente os mesmos. Cópias manuscritas sobreviveram até tão tarde quanto o século XIX.

Adicionalmente, de início havia certa suspeita em relação ao livro impresso, e o temor de que ele romperia a familiaridade entre o autor e seus leitores. Nessa visão o livro passara a ser produto de uma máquina, e não de uma pessoa. O leitor se vê diante de algo produzido impessoalmente, e compartilhado com muitos outros. “A carga de emoções que o livro evoca passa a decorrer do lugar que ele ocupa na vivência pessoal de seu dono, das lembranças que o livro possa trazer, mais do que suas características físicas” [3]. Marchal McLuhan, de fato, vai além, ao referir-se ao que ele chama de “grande paradoxo da era de Gutenberg”. Segundo ele diz a “homogeneização de homens e materiais passará a ser o grande programa da era de Gutenberg, a fonte de riqueza e poder desconhecidos de qualquer outro tempo ou tecnologia”. [4]

Briggs e Burke endossam essa posição, ao afirmar que a adaptação das práticas de leitura ao novo meio foi gradual, assim como os estilos de apresentação. O longo prazo em que se daria essa adaptação pode ser explicado também, pelo menos em parte, pelo temor que a Igreja demonstrou diante do potencial de popularização da informação. Briggs e Burke assinalam, por exemplo, que após 1520 houve um declínio das representações artísticas da Virgem Maria, uma representação comum na Idade Média. Num outro exemplo, no final do século XVI, em Veneza, um trabalhador do ramo de seda foi denunciado à Inquisição porque “lê o tempo todo”, e um ferreiro de espadas, porque “fica acordado a noite inteira lendo”. [5]

Os números disponíveis, de fato, apontam para um crescimento espantoso das obras impressas. Por exemplo, veja-se a quantidade de incunabulas conhecidas, que são as obras impressas até 31 de dezembro de 1500 [6]. Segundo o projeto Incunabula Short-Title Catalogue, coordenado por The Bristish Library, estima-se que haja nada menos que cerca de 28.000 edições de incunabulas sendo que 10.390 estão catalogados pela biblioteca. [7] Em 1500, só na Alemanha já tinham sido instaladas sessenta prensas, e as prensas da Europa, instaladas em duzentas e trinta e seis cidades, já haviam imprimido algo em torno de quinze a vinte milhões de livros. A figura 23 ilustra a taxa exponencial de crescimento dos trabalhos de impressão entre 1450 e 1500.

Figura 23 – Crescimento da indústria da impressão no início da invenção da imprensa. [8]

A distribuição das máquinas, conforme Burke, foi de 80 na Itália, 52 na Alemanha e 43 na França, sendo que chegaram na Basileia em 1466, Roma 1467, Paris e Pilsen em 1486, Veneza em 1469, Leuven, Valência, Cracóvia e Buda em 1473, Westminster em 1476 e Praga em 1477.

Desses centros, Veneza tornou-se um dos mais importantes, e chegou a representar sozinha, 20% de todo o mercado de livros da Europa. Com a tomada de Constantinopla pelos Turcos Otomanos, em 1453, muitos dos eruditos gregos que haviam fundado escolas ao longo do estreito de Bósforo partiram para a Itália, e se estabeleceram em Veneza. Embora os intelectuais voltassem-se aos clássicos originais em latim e grego, o grego era o preferido, o que valorizou ainda mais a chegada dos bizantinos. Veneza tornou-se então o novo centro do saber clássico, transpirando um clima de tolerância com outras culturas e religiões, num espírito de “viva e deixe viver” tão favorável aos mercadores [9].

Foi em Veneza que o humanista italiano Aldus Manutius (1449 – 1515) estabeleceu sua própria editora e impressora. Utilizando o rico ambiente intelectual e profissional disponível, produziu alguns dos volumes mais belos da história da imprensa, tanto em grego (Sófocles, Aristóteles, representado na figura 24, Platão, Tucídides) como em latim (Virgílio, Horácio, Ovídio). Aldus, no espírito renascentista, promovia a ideia de que essas obras deveriam ser lidas “sem intermediários”, o que significa no idioma original, e sem glosas. Aldus convidou também humanistas eminentes de outras partes da Europa, como o próprio Erasmo de Roterdã, para Veneza. Uma vez por dia, Aldus reunia os estudiosos para discutir os títulos que publicariam e os manuscritos que seriam usados.

Figura 24 – Obra de Aristóteles, impressa em grego por Aldo Manucio. [10]

As edições produzidas por Aldus faziam muito sucesso. Porém, ao passo que as bibliotecas particulares cresciam, os leitores passaram a achar incômodo o trabalho de transportar grandes volumes. Em resposta a essa demanda, Aldus passou a produzir livros de tamanho menor, in-octavo (a metade de um in-quarto, que era a metade do in-folio), onde ele priorizava a clareza do texto. Para isso ele introduziu técnicas que são usadas ainda hoje. O itálico ou griffo, criado pelo fundidor Francisco Griffo, que também fez as maiúsculas terem altura semelhante às minúsculas com traços ascendentes, para dar maior uniformidade à linha, conforme pode ser visto da figura 25.

Figura 25 – Livro de Gaius Suetonius Tranquillus, composto por Aldus Manucio. [11]

Essas providências de Aldus fizeram um grande sucesso e consolidaram o livro como ferramenta de estudo, contrapondo-se à imagem de uma posse a ser preservada a qualquer custo, das épocas anteriores. O baixo custo permitia que fossem substituídos, em caso de dano ou perda. Pela primeira vez na história centenas de leitores liam o mesmo livro, em Madri ou em Montpellier. Seu trabalho estabeleceu um padrão que foi adotado por pelo menos um século no mundo da impressão, e aliou-se decisivamente às novas práticas de leitura no Renascimento. Erasmo de Roterdã disse que o trabalho de Aldus não fora superado nem por Ptolomeu II Philadelphus, principal mentor da biblioteca de Alexandria, uma vez que Aldo estava construindo uma “biblioteca sem paredes”, capaz de alcançar qualquer leitor e de sobreviver a todo cataclismo [12]. É curioso como a Internet tem sido descrita com palavras quase exatamente iguais às que Erasmo utilizou para se referir aos livros populares de Aldus, conforme veremos mais adiante.

Muitos dos clientes de Aldus eram homens de atividades diversificadas, que frequentemente envolviam viagens: diplomatas, oficiais de estado, bispos da Igreja, membros da corte. Uma carta dirigida a Aldus por um de seus clientes testemunha o êxito de seu trabalho. O cliente em questão, Sigismundo Thurzo, um conselheiro e bispo húngaro, escreveu de Budapeste em 1501 para Aldus:

Visto que minhas mais variadas atividades não me deixam tempo livre para ler em casa os poetas e oradores, vossos livros – tão cômodos que posso manuseá-los caminhando e, sempre que possível, enquanto desempenho o papel de homem da corte – transformaram-se em motivo especial de alegria para mim. [13]

A aproximação do texto trouxe consequências também para a leitura prática do ambiente de ensino. A análise e interpretação do texto eram muito valorizadas, e as anotações pessoais eram vistas como valiosos auxílios de aprendizado. Guarino de Verona (1370 – 1470), um dos filósofos expoentes do Renascimento, recomendou o seguinte a seu aluno Leonello D’Este:

Seja o que for que estiver lendo tenha sempre à mão um caderno de anotações... no qual você possa escrever o que quiser e listar os tópicos que você juntou. Então, quanto decidir reler as passagens que mais o impressionou, não terá de folhear um grande número de páginas. Isso porque o caderno de anotações estará próximo como um empregado diligente e atento para lhe dar aquilo de que vier a necessitar. [14]

Os próprios textos eram impressos de modo a facilitar as anotações. Os impressores deixavam um espaço em branco entre as linhas e grandes margens, nas quais muitas anotações podiam ser feitas. A caligrafia dessas anotações é tão clara que evidenciam terem sido feitas a partir de um rascunho, demonstrando seu valor. Conforme explica Gratfon, “o estudante aprendia que cada texto não era apenas uma mera história, mas sim um complexo quebra-cabeça cuja lógica mais profunda tinha de ser descerrada pelo professor, com seus bolsos cheios de chaves-mestras”. É interessante notar que a descrição acima, com poucas alterações de alguns termos, descreve muito bem o que muitos séculos depois seria definido como um hipertexto. Mais adiante, Grafton explica a importância dessa abordagem do texto na prática da leitura:

[P]odemos usar as práticas da escola humanista para recriar um estilo da época em matéria de leitura. O jovem leitor... [a]prendia a buscar alusões, a tratar qualquer texto de maior importância como uma câmara de ecos na qual as palavras que ele tinha diante de si interferiam, alterando-as, com os subtextos que o escritor pretendera compartilhar com os seus leitores de educação similar... Esse processo ocorria nas salas de aula de toda a Europa e, por volta do início do século XVI, alguns dos professores mais criativos ofereciam uma sala de aula imaginária muito mais ampla do que aquela que poderia ser constituída por uma turma individual. Nesse ponto, a história das ideias, a história do livro e a história da leitura, até então separadas, passam a convergir de forma significativa. [15] (Grifo acrescentado)

Em harmonia com essa aproximação do livro, alguns dispositivos mobiliários chegaram a ser inventados para que a leitura se desse de modo mais confortável. Um dos mais interessantes foi proposto pelo engenheiro italiano Agostinho Ramelli, a serviço do rei da França, que desenvolveu uma espécie de mesa rotativa, ilustrada na figura 26. “Uma bela e engenhosa máquina, muito útil e conveniente para as pessoas que têm prazer no estudo, em especial para aquelas que sofrem de indisposição ou que estão sujeitas à gota, pois, com esse tipo de máquina um homem pode ver e ler uma grande quantidade de livros sem sair do lugar; ademais tem essa excelente conveniência que é a de ocupar pouco espaço no lugar onde é colocada, como qualquer pessoa de discernimento pode apreciar vendo o desenho”. [16]

Figura 26 – Roda de leitura idealizada por Agostinho Rameli, 1588, com a função de facilitar a consulta a vários livros. [17]

É interessante ler a descrição acima, tendo em mente um computador no qual se está fazendo uso de um programa de navegação. De fato, conforme analisa Chartier, a máquina permite o confronto de várias referências cruzadas, sem o incômodo de livros empilhados. [18]

Após o exame desse início da história da página impressa, convém mencionar uma discussão que tem polarizado estudiosos numa controvérsia que discute os efeitos da “invasão” do texto impresso sobre o manuscrito, e que é muito similar à que vivenciamos atualmente, que dá conta da “invasão” do texto eletrônico sobre o texto impresso. Burke agrupa os pesquisadores no que ele classifica como os que endossam a tese de uma revolução, e os que criticam a tese. O primeiro grupo favorece a existência de uma grande divisão, do letramento como um sistema autônomo, independente das pessoas que o usam (descontextualizado). A Escola de Toronto, particularmente McLuhan defendem esse viés. Por outro lado, pesquisadores como o antropólogo Brian Street propõem um modelo de letramentos, no plural, que enfatiza o contexto social da prática da leitura, e o papel ativo das pessoas que fazem uso dessas práticas.

Burke propõe que não é necessário tomar uma posição excludente nessa controvérsia. Há justificativas para cada uma delas, e devem ser vistas mais como complementares do que contrapostas. Como o desenvolvimento dos assuntos tem demonstrado até aqui, as afirmações extremas das duas correntes não se verificaram, nem o determinismo implícito da posição revolucionária, nem o voluntarismo dos contextualistas. Em outras palavras, em certos contextos é possível identificar certa homogeneização do pensamento (como o produzido pela cultura de massa, seja impressa, televisiva ou via Internet), como em outros a manutenção de grupos e culturas com limites claros, produzidos por esses mesmos meios. A própria invenção de Gutenberg ajudou na padronização e preservação dos idiomas alemão, francês e inglês. Os contextualistas fixam-se em análises a curto prazo, ao passo que os revolucionários se fixam em analisar os efeitos a longo prazo [19]. 

Finalizando essa consideração, Burke, mantendo essa perspectiva, digamos, conciliadora, sumariza as práticas de leitura entre os anos 1500 e 1800 em cinco tipos merecedores de atenção. Inicialmente, a imprensa possibilitou que a leitura se desse de modo mais crítico, uma vez que mais leitores teriam acesso ao mesmo livro. Naturalmente, isso não significa necessariamente que essa prática fosse sempre adotada, especialmente nos primeiros anos da imprensa. A proximidade com os manuscritos ainda trazia aos leitores do livro certa “sacralização” (por vezes mística) que tendeu a diminuir com o tempo. Em segundo lugar, a prática da leitura “secreta”, praticada por grupos subordinados, como operários, mulheres, ou correntes que não concordavam particularmente com a Igreja. Essa prática está no cerne do surgimento dos movimentos de reforma, abordados a seguir. A seguir, Burke alista a prática que ele chama de “criativa”, na qual o leitor pode dar ao texto um sentido absolutamente pessoal, ao ponto de ser oposto à intenção do autor. Uma quarta prática refere-se à extensão da leitura. Ao passo que nos primeiros séculos da impressão gráfica, à semelhança dos manuscritos, os títulos eram lidos e relidos, mais adiante, já no século XVIII, aumentou a prática de folhear o livro e fixar-se apenas nos trechos de interesse, seguindo a tendência da desacralização. O formato do livro, e a presença de índices, favoreceram essa prática. Finalmente, embora não totalmente nova, a leitura privativa tornou-se a mais e mais notória.

Burke pondera que essa classificação não é rígida, e não exclui outras práticas. Por exemplo, a leitura em grupo ainda era praticada, especialmente nos campos, com poucos habitantes alfabetizados. A leitura privativa era mais tipicamente praticada pelos mais abastados do que por outros grupos. [20] Entretanto, na perspectiva história desse trabalho, é possível apontar um grande amadurecimento na prática da leitura, e sua consolidação como atividade independente.


[1] USHER, Abbot Payson. Hystory of Mechanical Inventions, p. 238. Apud MCLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutenberg, p. 176.

[2] MAN, John. A Revolução de Gutenberg, p. 14.

[3] GRAFTON, Antony. Op. cit., p. 16.

[4] MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, p. 179.

[5] BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma História Social da Mídia, p. 32, 70.

[6] Essa data foi fixada arbitrariamente por Johann Saubert de Nuremberg, que criou o primeiro catálogo de livros primitivos.

[7] The British Library. Incunabulas.

[8] Fonte: MAN, John. A Revolução de Gutenberg, p. 228.

[9] BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Op. cit., p. 65.

[10] Fonte: Libreria Antiquria Pregliasco.

[11] Fonte: Rochester Library.

[12] GRAFTON, Antony. Op. cit., p. 16.

[13] GRAFTION, Antony. Op. cit., p. 19.

[14] GUARINO DE VERONA. Epistolário. (org) R. Sabbadini. Veneza. 1915-1919. II, p.270. Apud GRAFTON, Antony. Op. cit., p. 24.

[15] GRAFTON, Antony. Op. cit., p. 26.

[16] MANGUEL, Alberto. Op. cit., p. 156.

[17] Fonte: MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura, p. 157.

[18] CHARTIER, Roger. Leituras e Leitores na França do Antigo Regime,  p. 216.

[19] BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Op. cit., p. 75.

[20] BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Pgs. 69 a 74.

© Marco Antonio Simoes 2022