5. A popularização da leitura: os novos leitores dos séculos XVIII e XIX | História da Leitura

5. A popularização da leitura: os novos leitores dos séculos XVIII e XIX

O século XVIII, “Século das Luzes”, foi marcado por desenvolvimentos que, em muito, influenciaram e foram influenciados pelas práticas de leitura. Na sequência do renascimento e do humanismo, o iluminismo, movimento intelectual surgido no decorrer desse século, enfatizava a razão e a ciência, como formas de entender o universo. Segundo um de seus expoentes, Immanuel Kant, “o iluminismo é a saída do ser humano do estado de não emancipação que ele próprio se colocou”. Conforme Burke, “nenhuma história da mídia pode deixar de citar o Iluminismo francês, parte dominante de um movimento europeu de educação, crítica e reforma” [1]. Os pensadores centrais desse movimento, Voltaire (1694 – 1778), Rousseau (1712 – 78), Diderot (1713 – 84) e D’Alembert (1717 – 83), designavam a si mesmos como “homens de letras”, e concebiam seu papel como educacional.

Nesse ambiente, e particularmente na França e na Alemanha, relatos da época dão conta de uma “epidemia de leitura”. Citado por Wittman, um observador contemporâneo reporta que “[e]m Paris, todos lêem [...] Todos – principalmente as mulheres – têm um livro consigo. Lê-se no bonde, nos calçadões, nos intervalos do teatro, nos cafés, no banho. Nas lojas lêem mulheres, crianças, aprendizes, praticantes. No domingo as pessoas lêem diante de suas casas; os laçais lêem em seus assentos, os cocheiros em sua boleia, os soldados nas guaritas...” [2]. O mesmo autor cita o religioso Johann Rudolf Gottlieb Beyer, em 1796, ao fazer um diagnóstico da “febre de leitura” que ele observou. Seu relato é muito revelador sobre como se dava a prática da leitura, ainda que pelos seus olhos religiosos, diga-se:

Leitores e leitoras que se levantam e vão deitar-se com o livro, que se sentam à mesa com ele, que o têm consigo no trabalho, levam-no aos passeios e que não podem separar-se da leitura uma vez iniciada, enquanto não chegarem ao fim. Mas nem bem devoraram a última página de um livro, já se sentem ávidos por outro; e assim que encontram algo, num banheiro, num restaurante, numa estante ou em qualquer outro lugar, algo que pertença à sua área, o que lhes pareça legível, levam-no consigo, e o devoram com uma espécie de fome canina. Nenhum amante do tabaco ou do café, nenhum apreciado do vinho ou do jogo pode estar tão preso ao seu cachimbo, a sua garrafa, à mesa de jogo ou de café quanto alguns famintos leitores e suas leituras.  [3]

Em lugar da leitura intensiva de um pequeno cânon, no qual a presença de temas religiosos era marcante, o leitor, refletindo os ideais iluministas, prática agora uma leitura secularizada e individual, ávido por novos e variados materiais, quer para informação, quer para distração. O livro e a leitura passaram a ter um novo valor na consciência pública, uma função emancipadora capaz de transformar o leitor num membro útil da sociedade, por torná-lo mais consciente de seu círculo. É a partir do século XVIII que o texto impresso visava “penetrar na vida subjetiva do leitor”, conforme Ian Watt [4], em lugar de ser recebido como um meio algo autoritário a serviço quer de autoridades mundanas quer religiosas. A produção impressa desempenhou um papel fundamental nessa mudança de conceito.

Naturalmente, vale aqui a palavra de cautela constante entre os pesquisadores da leitura. Embora esse quadro positivo da prática da leitura encontre respaldo na pesquisa historiográfica, restringir-se a ele, ou aplicá-lo a cada leitor da época, seria pintar uma imagem incompleta. O analfabetismo ainda era considerável na Europa. A quantidade de títulos era enorme, e a qualidade dos textos nem sempre era elevada. A semana de trabalho de seis dias, de sol a sol, à qual boa parte da população estava sujeita, não lhes dava tempo, ou motivação, para lerem mais. A imagem deve ser vista, portanto, como um espírito geral, prevalecente, que decisivamente colocou a leitura no centro do dia a dia de grande parte da população influente.

O pesquisador Wittmann traz à atenção que é possível constatar a existência de diferentes práticas ocorrendo paralelamente e se entrecruzando, e ele as classifica em três. Inicialmente, a leitura “selvagem, praticada de modo ingênuo, pré-reflexivo e não-domesticado, e em grande parte em voz alta”. Era praticada principalmente por camponeses, com habilidades rudimentares, suficientes para manuais de agricultura, tabelas de plantio, livros de oração, ou na França, da já mencionada Biblioteca Azul. Com a Revolução Francesa, esse hábito mudou substancialmente, uma vez que as notícias chegavam aos rincões mais distantes via texto impresso, o que deu à leitura um significado mais importante, transformando-a em “leitura útil”. Essa última, já praticada mais predominantemente no ambiente citadino, seguia mais de perto os ideais iluministas, que viam na leitura um instrumento para o aperfeiçoamento individual. Um tipo de leitura que Jean-Jaques Rousseau chamou de “sensata”, em oposição à primeira que ele considerou como escapista e de distração. Essa “leitura útil” opunha-se também à “leitura erudita”. Contrário à leitura selvagem, a leitura erudita era considerada por eles como alienante, pedante e caseira, não produzindo benefícios para a sociedade. [5]

Um dos resultados da valorização a essa leitura útil foi a produção da magistral Enciclopédie, figura 28, de 1751 a 1780, com seus trinta e cinco volumes e 71.818 artigos, contribuídos por grandes intelectuais, como Montesquieu, Voltaire e Rousseau. Um contribuinte notável foi Louis de Jaucourt, com cerca de 18.000 artigos, numa média de 8 por dia entre 1759 e 1765. Concebida inicialmente para ser uma tradução em quatro volumes da Cyclopaedia inglesa, ganhou vida própria, e serviu como um importante veículo da filosofia iluminista. [6] Dirigida pelos iluministas Diderot e D’Alembert, seu objetivo manifesto no prefácio escrito por Diderot, era “mudar a forma das pessoas pensarem”. [7]

Figura 28 – Capa da Encyclopédie, obra emblemática da “leitura útil” que se consolidava no Iluminismo. [8]

A Encyclopédie desempenhou um papel importante na Revolução Francesa, e foi um evento crucial da história da comunicação. Ela buscava sistematizar todo o conhecimento humano alcançado até então, e o fez na Taxonomia do Conhecimento Humano, que se baseava nos pensamentos de Francis Bacon (1561 – 1626). Conforme explica Chartier, “havia a ideia da organização, da classificação e da ordem”. [9] Dividia as ciências em três grandes grupos: ciência da imaginação, ou poesia; ciência da memória, ou história; ciência da razão, ou filosofia. É interessante a forma que os enciclopedistas utilizaram para a leitura dessa divisão. Está ilustrada na figura 29.

Figura 29 – Taxonomia do Conhecimento segundo a Encyclopédie. [10]

Na representação, a religião ficou subordinada à razão, um fator que provocou significante controvérsia. A Encyclopédie desempenhou um papel importante na arquitetura intelectual da Revolução Francesa, uma vez que, conforme a Enciclopédia Britânica, ela buscava não apenas fornecer informações, mas também formar opiniões. Afirma a Britânica, que “talvez nenhuma enciclopédia tenha tido tal importância política ou tenha ocupado tão notoriamente a história civil e literária nesse século”. Analisando a importância da Encyclopédie,  Clarinida Donato afirma:

Os enciclopedistas argumentaram e propagaram com sucesso sua crença no poder da razão e do conhecimento unificado para potencializar as motivações humanas e assim ajudar a talhar as questões sociais que seriam alcançadas pela Revolução Francesa. Embora seja improvável que muitos artistas, técnicos ou operários, cujo trabalho e presença entremeavam a Encyclopédie, realmente a lessem, a valorização de seu trabalho como sendo igualmente importante do que o dos intelectuais, clérigos e governantes, preparou o terreno para desejos de maior representação. Assim, a Encyclopédie serviu para reconhecer e consolidar uma nova base de poder, em última análise contribuindo para a destruição dos valores antigos e a criação de valores novos.  [11]

O teor geral da Encyclopédie era de afastamento da religião como autoridade, e de que o homem e sua razão eram responsáveis por sua sorte, muito mais do que a fé e a espiritualidade. Apesar das controvérsias e inimigos, e de seu elevado custo, cerca de quatro mil pessoas a encomendaram. Posteriormente, foram produzidas edições de custo inferior, e ela também foi disponibilizada em bibliotecas, o que permitiu uma ampla distribuição.

Um outro desenvolvimento consequente desse novo papel da leitura foi a consolidação dos jornais, cartazes e formulários a partir dessa época. Em 1872, por exemplo, um visitante suíço em Londres ficou impressionado com a quantidade de lojas que tinham seus nomes escritos na fachada, ao invés de sinais, assim como da quantidade de ruas que tinham seus nomes escritos. Um cidadão analfabeto estaria em clara desvantagem. Os recenseadores passaram a usar formulários impressos nos levantamentos, e os padres preenchiam formulários para atestar os “bons antecedentes” de mulheres órfãs que iriam se casar. Os cardeais usaram cédulas impressas para a eleição do novo papa.

Os jornais diários tiveram grande desenvolvimento no século XVIII. Não é possível afirmar quando a palavra “imprensa” se tornou sinônimo de jornalismo, mas, certamente é por essa época que os jornais, “filhos” dos panfletos reformistas, consolidaram sua função. Por exemplo, por volta de 1650, um jornal teria em média seis anúncios. Cem anos depois, esse número já era cinquenta.  Um novo mercado se configurava e sobre ele novo mercado, Burkes explica o seguinte:

As notícias eram vistas na época como mercadorias, ao menos pelos que escreviam sátiras, com Bom Johnson, com sua peça “A matéria das notícias” (1626), em que retratou uma tentativa de monopolizar o negócio. Como argumenta o sociólogo Colim Campbell, as novelas do século XVIII, assim com os atuais seriados de televisão, permitiam aos leitores o desfrute vicário de caras mercadorias de consumo e estimulava-os a comprá-las, servindo de parteiras ao que tem sido chamado de “nascimento da sociedade de consumo”.  [12]

Os avanços tecnológicos acompanhavam esse consumo. Em 1723, foi impresso o primeiro livro em cores usando o processo de quadricromia, técnica que permite a impressão de uma ampla gama de cores utilizando quatro pigmentações (ciano, magenta, amarelo e preto). No final do século XVIII, as impressoras rotativas, que permitem uma velocidade de impressão bem maior, passaram a ser usadas. Somente na Grã-Bretanha, em 1792, foram vendidos 15 milhões de jornais. Outras publicações periódicas também surgiram nessa época, como os jornais acadêmicos alguns jornais acadêmicos. Resenhas de livros passaram a ser publicadas – uma forma de escrita que levava a outra.

Os jornais já buscavam também ter um perfil claro, ou atingir certo público específico. O periódico Mercure Galant, fundado em 1672, por exemplo, era dirigido a um público de menor escolaridade, particularmente às mulheres. Era ilustrado e tinha o formato de uma carta escrita por uma senhora de Paris a outra no campo. Outros como The Athenian Mercury, fundado pelo livreiro John Dunton (1659 – 1733), buscou de modo pioneiro um formato interativo, em que os leitores enviavam perguntas “interessantes e curiosas”. Nos seus seis anos de existência, cerca de seis mil perguntas foram respondidas. Outros traziam artigos sobre filosofia, moda, política, ética, entre outros.

Como toda inovação, os jornais tiveram também seus críticos. Alguns argumentavam que os jornais publicavam o que deveria ser mantido em segredo. Num exemplo específico, os autores Michael McDonald e Terence Murphy escreveram que “o estilo e o tom das histórias dos jornais sobre o suicídio promoveram uma atitude secular crescente e simpática sobre esse ato”. O raciocínio vinha do fato de que as cartas dos suicidas eram publicadas, e, cartas de suicidas posteriores tinham óbvia influência das anteriores. Assim, a discussão do poder da influência da mídia no comportamento não é nova. Não é novo também o ceticismo com que as informações impressas são recebidas muitas vezes. Os que liam vários jornais queixavam-se de que as informações eram inconsistentes. Os que liam um único reportavam que relatos posteriores contradiziam os primeiros.

Porém, é desta época a consolidação do termo “opinião pública”, ocorrendo pela primeira vez em francês em 1750, em inglês em 1781 e em alemão em 1793. O filósofo Jurgen Habermas redefiniu esse conceito por ampliá-la para “esfera pública” uma vez que o primeiro parece indicar certo consenso, ao passo que o segundo expressa a ideia de uma arena na qual acontecem debates e argumentações. O estudo de Habermas é importante por conceber a mídia como um sistema composto de muitos elementos distintos que se concatenam (incluindo o texto escrito, mas também os cafés, clubes e salões). Os cafés, em particular desempenharam um papel importante na Revolução Francesa. Esses locais normalmente recebiam todos os jornais e panfletos e neles reuniam-se intelectuais. Tornaram-se centrais de discussão onde se formou muito do ideário da Revolução.

O panorama das práticas de leitura na Era Moderna inclui outros desenvolvimentos importantes, além dos preconizados pelo Iluminismo, que se centrava na formação social. Especialmente no final do século XVIII foi notável a presença da leitura “sentimental” e “enfática”, no qual a leitura visava provocar emocionalmente o leitor. Samuel Richardson (1689 – 1761), por exemplo, conseguiu um grande sucesso com sua heroína Pamela, com o romance epistolar Pamela or virtue rewarded (1740). Pamela é uma jovem camareira que resiste às investidas de seu patrão, e conta suas histórias através de cartas. O êxito de Richardson foi seu estilo subjetivo, o qual, nas palavras do pesquisador Ian Watt, fez com que a obra pudesse ser “elogiada por um sacerdote e ser tomada como pornográfica, uma obra que alegrava o público leitor com a atração dupla de um leitor e de um strip-tease” [13].

Na França a recepção do romance Nouvelle Héloïse (1761) de Rousseau, foi muito parecida, tornando-o o maior best-seller do Antigo Regime, com pelo menos setenta edições antes de 1800. Wittmann compara a leitura dos episódios à êxtase dos adolescentes em concertos pop. Na Alemanha, a obra de Goethe Die Lieben des jungen Werthers, encontrou no público jovem uma enorme aceitação, alguns adotando e estilo de roupa do herói da história, ou transformando alguns objetos como um sinal de “juventude rebelde”. Em casos extremos, suicídios foram atribuídos à recepção equivocada da obra.

Nem os iluministas, nem as autoridades estatais nem as eclesiásticas viam com bons olhos essa prática de leitura que Wittmann chamou de “adolescente”. Os eruditos da época discutiam o assunto, e ficava clara uma distância entre a “elite” e a “massa” de leitores. Voltaire, em particular, foi desdenhoso com o que ele chamava “ralé” (canaille). Outro iluminista, Immanuel Kant, queixou-se que a leitura popular, em vez de ser “um meio de formação para a autonomia”, serviria para muitos “simplesmente como passatempo e manutenção do estado de eterna dependência social” [14]. O embate entre “erudito” e “popular” certamente não é novo e encontra ecos em inúmeros períodos históricos, sendo que o nosso não é uma exceção.

Ainda que a contragosto de algumas classes, essa leitura sentimental e romântica provocou muitas mudanças não só na frequência com que ela ocupava as atividades, mas também nos locais onde ocorria. O silêncio e a tranquilidade para a leitura eram valorizados, muitas vezes ao ar livre, junto a belas paisagens capazes de evocar sentimentos correspondentes à leitura. O ambiente doméstico amoldava-se à prática, com dependências exclusivas para a leitura e com a elaboração de mobiliário específico para ela, incluindo, no fim do século XVIII “mesas circulares e mesinhas destacáveis que permitem a leitura sobre cadeiras de prolongamento e a consulta de guias sobre um estrado central, ou então espreguiçadeiras com carteiras corrediças” [15].

Com uma procura maior por diferentes títulos, os mecanismos para ler sem comprar também se multiplicaram, e, no início do século XIX, por exemplo, a Inglaterra contava com não menos que mil. Na França o aumento também foi grande, e na Alemanha, mesmo cidades pequenas contavam com bibliotecas de empréstimo. Por volta de 1800, Leipzig possuía nove e Frankfurt, 18. Mesmo uma cidade pequena, como Orianenburg possuía uma biblioteca de doze mil volumes mantida pelo chefe dos correios. Assim, com a leitura, algumas bibliotecas eram discriminadas pela “elite”. Aquelas cujo acerto era eminentemente literário eram consideradas “locais moralmente venenosos e bordéis”, ou, no mínimo, “estabelecimentos marginais”. O estado procurava exercer controle sobre esses locais, por vezes proibindo-os, particularmente depois da Revolução Francesa. Entretanto, isso não evitou que, especialmente a partir do século XIX houvesse uma avalanche delas.

As sociedades literárias, diferentes das bibliotecas de empréstimos, eram organizações autoadministradas, sem fins lucrativos, que disponibilizavam material de leitura a preços módicos para seus membros, na sua maioria burgueses do Iluminismo tardio. Constituíram uma solução que tanto organizava seus membros, como também favorecia a leitura extensiva, cujo anseio de material novo ultrapassava as possibilidades de compra de cada um. Seu número, como as bibliotecas, também cresceu rapidamente, indo de treze sociedades abertas em 1770 até cento e trinta, em 1810, somando seus membros em aproximadamente 50 mil pessoas. Do mesmo modo que as bibliotecas, elas também foram combatidas, e seus catálogos frequentemente inspecionados, especialmente nos territórios católicos. Quer pela pressão externa, quer pela alteração do valor atribuído à leitura, essas organizações assumiram um papel maior de convivência social, e algumas delas sobrevivem até hoje.

Esses movimentos e iniciativas tiveram consequências no mercado livreiro, naturalmente. Se tomarmos como parâmetro a Feira do Livro de Leipzig, uma das mais tradicionais, observamos o seguinte quanto ao número de títulos: em 1765, 1384 títulos; em 1775, 1892 títulos; em 1785, 2713 títulos; em 1795, 3257; em 1800, 3906 títulos. Esses números estão representados graficamente na figura 30.

Figura 30 – Quantidade de títulos presentes na Feira do Livro em Liepzig. [16]

O formato do livro também foi alterado, passando de 21 x 28 centímetros para 14 x 21 centímetros, menor e mais manuseável, bem mais ao gosto do crescente número de leitores.

Assim, o final do século XVIII marca o que pode ser chamada de uma revolução da leitura. O embate entre os iluministas, com sua obsessão pela “leitura útil”, e a consolidação da prática da leitura popular, como fuga das exigências sociais, nas palavras de Wittmann, termina com a vitória da própria leitura. Diz ele:

Mas em poucas décadas o desenvolvimento passou por cima de ambos; o público de 1800, já amplamente anonimizado, heterogêneo e disperso, em suma, o público moderno, havia muito já não era alcançado pela educação pela leitura. Esses leitores não liam o que lhes era indicado pela autoridade e pelos ideólogos, mas o que satisfazia suas necessidades concretas, emocionais, intelectuais, sociais e pessoais. O gênio escapara definitivamente da garrafa. [17]

O século XIX, no qual o termo “mídia” não havia ainda sido cunhado, ocorre o que pode ser considerado a “era de ouro” do livro, pelo menos por duas razões: foi a primeira geração em que já se pode falar em alfabetização em massa, e, segundo, foi a última geração em que o livro não competia de outros meios de comunicação, como rádio, TV ou outros meios digitais. Além disso, a técnica de produção, comercialização e distribuição do material impresso já estava consolidada. Já antes, em 1758, James Ralph, em The Case of Authors, afirmava que “fazer livros é a manufatura mais que próspera”. Os desenvolvimentos tecnológicos mais o aumento da produção implicaram numa queda acentuada dos custos, tornando o livro muito mais acessível.

Na França, 50% dos homens e 30% das mulheres eram alfabetizadas; na Inglaterra, 70% dos homens e 55% das mulheres e na Alemanha, 88% da população era alfabetizada. Além de haver mais leitores, os leitores tinham mais tempo, já que a jornada de trabalho diminuía, sendo de dez horas semanais na Alemanha em 1870 e nove horas semanais na Inglaterra em 1880. O romance ganha maior prestígio, e passa a ser a expressão literária clássica da sociedade burguesa. O escritor Walter Scott (1771 – 1832) [18] é um dos exemplos mais notáveis, sendo um dos primeiros autores, se não o primeiro, que pode ser considerado internacional ainda em vida, com seus livros sendo lidos simultaneamente por toda Europa, Austrália e Estados Unidos da América. Pouco depois, na década de 1870, Júlio Verne tornou-se um fenômeno com o estilo de ficção científica, do qual ele se tornou um dos pais. Numa época em que, pouco antes, raramente um romance tinha uma tiragem de 1500 exemplares, edições mais baratas de seus livros chegavam a 30.000 cópias.

A leitura já estava difundida a ponto de haver muitos leitores que nunca haviam lido um livro propriamente. Chamados por Wilkie Collins de “público desconhecido”, eram leitores de revistas ilustradas de baixíssimo custo, com anedotas, seriados, dietas, receitas, etc. Collins expressa a preocupação de muitos na época, ao dizer que “o futuro da ficção inglesa poderá estar nas mãos desse público desconhecido, que aguarda que lhes ensinem a diferença entre o bom e o mau livro”. [19] Esses leitores provocavam indignação nos que se julgavam leitores mais sérios.

Uma parte substancial da nova legião de leitores era composta de mulheres, entre as quais a taxa de analfabetismo havia diminuído consideravelmente no final do século XIX. Por exemplo, na França, em 1842 foram fundadas as primeiras escolas femininas de professoras, e logo em 1880 já eram frequentadas por 2 milhões de meninas. A esse fato, seguiu-se um aumento na publicação de periódicos para o público feminino, na forma de revistas sobre cozinha, convívio social e causas femininas. Em 1864, por exemplo, um número inteiramente escrito por Alexandre Dumas e Gustave Doré alcançou a impressionante tiragem de 250 mil exemplares.

Uma comparação entre duas obras dessa época, ambas de Edouard Manet (1832 – 1883) é muito reveladora na análise da percepção que se tinha do leitor e da leitora. A primeira, na figura 31, representa uma figura paternal e conservadora, em atitude de meditação diante de um pesado volume, lido com seriedade e erudição. As poucas cores e luzes enfatizam a sobriedade da cena. A segunda, bem mais vibrante, na figura 32, representa uma jovem, elegante e moderna leitora diante de uma revista ilustrada, numa leitura distraída feita ao ar livre, num café.


Figura 31 – O Leitor. Eduard Manet. [20]

Figura 32 – A Leitora do Illustré. Eduard Manet. [21]

A visão de Manet representa também um estereótipo da leitora como uma consumidora de material leve, trivial e romântico. Essa percepção não deixou de influenciar na diagramação das revistas femininas, que passaram a fragmentar mais o texto, inserindo anúncios ilustrados. A diagramação buscava refletir o ritmo de trabalho cheio de interrupções da mulher moderna.

Os romances também eram muito consumidos pelo público feminino. Stendhal, em sua correspondência, assinala a respeito das mulheres francesas nas províncias que “são poucas (...) que não lêem cinco ou seis volumes por mês; muitas lêem quinze ou vinte; e não se encontra cidadezinha que deixe de ter dois ou três gabinetes de leitura”. [22] Essa preferência pelos romances não deixa de inquietar os mais conservadores, que atribuíam aos romances o perigo de excitar paixões e exaltar a imaginação feminina. Assim como na pintura de Manet, algumas personagens femininas transgressoras refletem esse estereótipo como Emma Bovary, Anna Karenina e Effi Briest. [23]

Porém, a mulher demandava cada vez maior liberdade para ler. Isso não deixou de ser observado por escritores, editores, bibliotecários e artistas que, na representação das leitoras de romances, diferente de Manet, as representam como leitoras absortas e totalmente entregues à leitura, mesmo em locais menos formais, como nos dois desenhos de James Whistler (1834 – 1903), representados nas figuras 33 e 34.


Figura 33 – Reading in Bed. James Abbott McNeill Whistler.  [24]

Figura 34 – Reading at Lampnight. James Abbott McNeill Whistler. [25]

O ensino da leitura na infância também ganhou mais atenção no século XIX, embora tenha sido mais no final do século que a estrutura educacional apresentou algumas melhoras relevantes. No início, até o equipamento escolar era muito rudimentar, com salas mal iluminadas e pouco arejadas, com quase nenhum mobiliário. Em 1833, na cidade de Montpellier, cada sala era frequentada por algo entre 100 e 220 alunos. Mais no final do século, a educação infantil se torna obrigatória, mas é lentamente que a frequência escolar aumenta. O trabalho infantil era grande, e os métodos de ensino penosos, resultando em muitas evasões. A literatura usada era a princípio bastante religiosa e rigorosamente didática.

Algumas formas de literatura passaram a tornarem-se populares entre as crianças, particularmente os contos de fadas, heranças de antigas tradições orais. A maioria, porém, foi suavizada para se conformarem aos padrões da época, de modo a sempre conterem alguma lição de moral e normalmente um final feliz. Os irmãos Grimm, em particular, buscavam atender a essa demanda buscando histórias germânicas e adaptando-as ao novo mercado. Um exemplo típico é o das crianças Hansel e Gretel (no Brasil conhecidas como João e Maria), no qual a mãe foi substituída por uma madrasta e as crianças são abandonadas na floresta a contragosto do pai, de modo a que nenhum dos progenitores figurassem como maldosos. A madrasta, convenientemente, morre durante o período em que as crianças estão presas na casa de uma bruxa (que também morre no final, fazendo alguns suporem que se tratavam da mesma pessoa).

Júlio Verne também foi um autor importante para um público de idade ligeiramente superior. Suas obras tinham um caráter científico bem ao gosto das tendências filosóficas positivistas. Seus heróis agradavam ao público conservador, por suas qualidades de heroísmo, bravura e autocontrole. O editor de Verne, Hetzel, enfatizava este aspecto sobremaneira, promovendo as histórias como trabalhos científicos sérios, que demonstravam que a ciência podia ajudar a humanidade a superar qualquer obstáculo. Os livros evidentemente favoreciam essa descrição. Um dos mais populares, Vinte mil léguas submarinas, popular até hoje, de fato, contém a descrição da biblioteca do Capitão Nemo, a bordo do submarino Nautilus, como tendo um acervo de doze mil livros, que, nas palavras do Capitão Nemo “eram sua única ligação com a terra firme”. A figura 35 é uma representação artística dessa biblioteca, conforme ilustração da primeira edição da obra.

Figura 35 – Capitão Nemo com Doutor Aronax na Biblitoteca do Nautilus, episódio da obra Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne.  [26]

 

Por outro lado, Verne buscava ir além do aspecto puramente científico de seus livros, e buscava transcendê-lo para transmitir aos leitores o espírito de fantasia e aventura, o que por vezes causou desentendimentos entre editor e autor. É possível ver nos seus escritos após a morte de Hetzel que Julio Verne não era tão otimista em relação à utilização da tecnologia, já temendo seu potencial destrutivo. Entretanto, submeteu-se às orientações de Hetzel, que era um editor experiente, e chegou a alterar o rumo de algumas histórias, ou deixar de publicar outras. Segundo estatísticas da UNESCO, Julio Verne chegou a ser traduzido em 148 idiomas.

Além das mulheres, crianças e jovens, outra classe na qual a leitura ganhou terreno no século XIX foi a classe operária, em grande parte devido ao seu aumento e à sua consolidação como uma das classes consideradas fundamentais para a construção da sociedade. No discurso de inauguração da biblioteca de Manchester, 1852, dirigido à classe trabalhadora, Charles Dickens expressou sua confiança de que os livros ali disponíveis “para seu proveito [dos trabalhadores] irão alegrá-lo nas lutas e fadigas de sua vida; aumentar seu auto-respeito; ensinar-lhe que capital e trabalho não se opõe, mas dependem um do outro e se apóiam mutuamente [aplausos e gritos de apoiado]; permitirão que ele reduza a pó o preconceito que cega, as falsidades corruptas e tudo o mais que não seja a verdade [aplausos]” [27].

Apesar da ênfase de Dickens ser maior na capacidade moralista e edificante da leitura, ele sabia que, apesar das exigências da educação continuada oriundas da industrialização, a maior demanda era pela literatura para a diversão. A redução das jornadas de trabalho possibilitou à classe operária exercer mais plenamente a leitura como prazer. De fato, a quantidade de operários usuários de bibliotecas não era nada insignificante, conforme ilustrado na figura 36, superando várias outras categorias.

Figura 36 – Usuários das bibliotecas populares parisienses por profissão, 1885 – 1894. [28]

 

A quantidade de operários usuários das bibliotecas sofria uma alteração sazonal: aumentava durante os períodos em que o trabalho diminuía, quando a jornada de trabalho era menor. Esse interesse dos operários pela leitura, e os benefícios do consequente afastamento da bebida, superstição excessiva e obscenidades, levou grandes empresas e estabelecerem bibliotecas de fábricas, algumas com considerável acervo. Na Alemanha, na Usina de Aço do Reno, 47% dos funcionários eram usuários da biblioteca em 1911, e em 1910, a Companhia Krupp possuía 61.000 volumes, sendo que 50% dos funcionários emprestavam livros regularmente.

Apesar do esforço dessas bibliotecas de favorecer sempre a leitura considerada “útil”, os leitores, em sua maioria, faziam a própria escolha de seus temas e assuntos, estando os romances sempre entre os mais solicitados conforme a figura 37.

Figura 37 – Categorias de livros emprestados pelas bibliotecas municipais de Paris em 1882. [29]

 

Não obstante essa clara preferência, é necessário mencionar uma camada da classe operária que superou muitos obstáculos para emancipar-se da ignorância e da dependência: os autodidatas. Nem sempre a educação formal estava ao alcance, especialmente dos mais humildes, e autobiografias da época contém relatos similares de horas e horas de leituras tardias, após longas jornadas de trabalho, sob uma iluminação precária (às vezes as brasas do fogareiro). Porém, eram muito disciplinados e regulares. Willam Lovett um desses autodidatas que por fim tornou-se educador, explica que o objetivo era triplo: pão, conhecimento e liberdade. Thomas Cooper, que se tornou escritor e conferencista, foi um bom exemplo de esforço pessoal. Enquanto trabalhou como aprendiz de sapateiro, lia das 3 ou 4 até às 7, quando começava o trabalho. Recitava textos enquanto trabalhava e lia enquanto almoçava, e no retorno para casa, até cair de exaustão. Sofreu um esgotamento físico que o deixou de cama por vários meses. Em sua autobiografia, Thomas Cooper diz:

Eu pensava que seria possível, até os 24 anos de idade, já ter dominado os rudimentos de latim, grego, hebraico e francês; já ter entendido Euclides e completado o curso de álgebra; ter memorizado todo o Paraíso Perdido e sete das melhores peças teatrais de Shakespeare; ter lido um grande e sólido curso de história e de assuntos religiosos, além de estar familiarizado com a produção literária corrente. Não cheguei nem perto disso, mas fui em frente cheio de alegria. [30]

A eloquente e cândida descrição de Cooper reflete bem os anseios de uma emergente elite intelectual operária autodidata que reconhecia a importância da palavra escrita. Assim como no caso de Cooper, as autobiografias raramente deixam de descrever de forma detalhada os planos de leitura traçados. Samuel Bamford, tecelão em Lancashaire descobriu o que chamava de “abençoado hábito da leitura”. Depois de envolvimentos políticos, praticou jornalismo e tornou-se um leitor público de poesia. O marceneiro James Hopkins escreveu “[q]ue vida desperdiçada é a daquele que não tem livro favorito, que não possui coleção de pensamentos ou de lembranças felizes sobre o que tenha feito, experimentado ou lido”.  [31]


[1] BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Op. cit., p. 103.

[2] WITTMANN, Reinhard. Existe uma Revolução da Leitura no Final do Século XVIII?.  In CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. Op. cit., p. 135.

[3] WITTMANN, Reinhard. Op. cit., p. 136.

[4] WATT, Ian. The Rise of the Novel. 1957, p. 60. Apud WITTMAN, Reinhard, p. 138.

[5] WITTMANN, Reinhard. Op. cit., p. 143.

[6] BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Op. cit., p. 104.

[7] RING, Clauss. Are the Internet and printed products interchangeable media?

[8] Fonte: Wikisource. Encyclopédie.

[9] CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro, p. 135.

[10] Fonte: Wikisource. Encyclopédie.

[11] DONATO, Clarinida. The Encyclopédie and the Age of Revolution.

[12] BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Op. cit.. Apud GONTIJO, Silvana. Op. cit., p. 220.

[13] WATT, Ian. The Rise of the Novel: Studies in Defoe, Richardson and Fielding.

[14] WITTMANN, Reinhard. Op. cit., p. 151.

[15] CHARTIER, Roger. Leituras e Leitores na França do Antigo Regime, p. 217.

[16] Fonte: Gráfico construído com o Microsoft Excel, baseado nos dados de WITTMAN, Reinhard, p. 152. * Valores interpolados.

[17] WITTMANN, Reinhard. Op. cit., p. 161.

[18] Autor de Ivanhoé, Rob Roy, The Lady of the Lake, entre outros.

[19] LYONS, Martyn. Op. cit., p. 167.

[20] Fonte: Projeto Gutenberg. O Leitor.

[21] Fonte: Sunsite Gallery. A Leitora do Illustré.

[22] STENDHAL. Correspondance. Org. Paupé-Chéramy. Apud LYONS, Martin. Op. cit., p. 171.

[23] Emma Bovary, personagem do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, França, vê a vida através da literatura sentimental. Anna Karenina, do romance homônimo de Leo Tolstoy, Rússia, buscou um relacionamento afetivo fora de seu casamento. Effi Briest, do romance homônimo de Theodor Fontane, Alemanha, trata de uma mulher que transgride o rígido código de conduta da era prussiana.

[24] Fonte: Ketter Kunst Exibitions. Reading in Bed.

[25] Fonte: The New York Public Library. Reading ad Lampnight.

[26] Fonte: Vingt Mille Lieues sous les mers, 1870, ilustrado por Alphonse de Neuville.

[27] LYONS, Martyn. Op. cit., p. 186.

[28] Gráfico construído com o Microsoft Excel, baseado em Baseado em LYONS, Martyn, Op. cit., P 186.

[29] Gráfico construído com Microsoft Excel, baseado em LYONS, Martyn. Op. cit., p.190.

[30] COOPER, Thomas. Thomas Cooper by himself. Apud LYONS, Martyn. Op. cit., p. 190.

[31] GOODMAN, J. B. Victorian Cabinet Maker: the memoirs of John Hopkinson. Apud LYONS, Martyn. Op. cit., p. 191.

© Marco Antonio Simoes 2022