Conclusão | História da Leitura

Conclusão

O ensaio teórico apresentado nessa pesquisa demonstrou que a ligação entre a história da leitura e a história do homem é antiga e profunda. É possível afirmar que não há uma história própria da leitura, desvinculada, ainda que paralela, à história do homem. O contexto histórico muitas vezes afetou e até determinou como se daria a leitura em certas épocas. Ao mesmo tempo, a leitura foi grandemente responsável por muitos dos fatos históricos que alteraram o rumo de acontecimentos e o próprio destino da humanidade.

Assim como o homem, a prática da leitura não é nem estática nem uniforme, mas uma aptidão natural cumulativa, que se desenvolve e progride de modo exponencial. Cada nova prática aprimora e acrescenta-se a práticas anteriores, por sua vez, abrindo caminho para novas formas de leitura. A leitura pública, que tinha a escrita como simples suporte ao discurso, sendo este o veículo definitivo, exerceu papel fundamental em estabelecer consensos e evidenciar contradições. Ainda que não realizada do mesmo modo que antes, esta prática ainda exerce esse papel, em grande medida graças ao rádio e à televisão, cuja programação, em muitos casos, é uma mera leitura pública de textos.

Essa prática mais ostensiva da leitura pública deu lugar à leitura silenciosa, sendo esta talvez a maior revolução na história da leitura. Na leitura silenciosa trava-se um diálogo entre o leitor e o texto de tal modo particular, que é possível afirmar que um mesmo texto não é lido do mesmo modo por duas pessoas, pois que não existem duas pessoas iguais. Mas que isso, o mesmo texto não será lido do mesmo modo duas vezes pela mesma pessoa. À medida que mudamos, muda o sentido que colhemos das mesmas palavras. Essa liberdade conquistada deu ao texto vida própria, e ao leitor o papel de autor. Nenhum texto é definitivo, já que é reinventado a cada leitura.

Esses desenvolvimentos históricos foram abordados nesse trabalho, iniciando com as práticas de leitura entre os judeus, conforme registradas no livro de maior significado na história da humanidade. Como povo nômade por boa parte de sua existência, e em várias ocasiões exilados e dispersados, os judeus, que, diferentes dos egípcios, gregos, romanos e outros povos, não tiveram tradição em obras de arquitetura ou grandes conquistas territoriais, erigiram e mantiveram sua identidade nacional graças à prática da leitura. Em grande parte, herdamos deles a noção de autoridade do livro e da importância da leitura.

A cultura grega, por sua vez, embora valorizando notavelmente a palavra falada em detrimento da escrita por primar pelos questionamentos e argumentações, contribuiu para que a leitura também avançasse para este modo: questionador e argumentativo. Em harmonia com esse conceito, desenvolveram o alfabeto de modo a torná-lo mais sonoro e mais flexível, iniciativa que nos afeta até hoje. E, não obstante à grande valorização da oralidade, devemos a eles a maior biblioteca do mundo antigo, originadora de incontáveis outras, de caráter público ou privado.

Com seus sucessores, os romanos, apesar de atribuírem à cultura, e consequentemente à leitura, uma importância muito diferente, vimos muitas mudanças e evoluções na prática da leitura. A amplitude dessas transformações foi multiplicada e intensificada pela enorme abrangência do império romano, unificado por um idioma essencialmente único e uma rede de comunicações quase onipresente, e pela sua longevidade. Já é observado, entre os romanos, um compartilhamento de várias práticas simultâneas de leitura, algumas voltadas para a utilização prática, seja legal ou científica, mas já outras voltadas para o lazer e para a contemplação. Com eles também, essa variedade de práticas é verificada numa população também variada. Começa a consolidar-se a noção de público leitor, entre o qual o público feminino, com diferentes graus de instrução e diferentes demandas de tipos de leituras. Como resultado, verificamos o surgimento do conceito de autoria, com o escritor buscando estabelecer contato com seu leitor, e capturar-lhe a atenção.

Essa variedade de conteúdos e consumidores, assim como o alvorecer do cristianismo, que se dava paralelamente no seio do Império Romano, concorreram para a primeira grande mudança no suporte do texto escrito: o códice. Suas vantagens facilmente fizeram com que substituísse o rolo, hegemônico por cerca de três milênios: maior capacidade, e, portanto, maior portabilidade, maior facilidade de consulta e maior possibilidade de interação com a leitura. Por essas características, o códice, alterou para sempre a prática da leitura.

Essas alterações alcançaram a Idade Média, tanto no período em que os mosteiros atuaram como os guardiões e multiplicadores das obras escritas, o período monástico, como no período escolástico, em que as universidades se consolidam e um leitor completamente diferente começa a desenhar-se. Se nos mosteiros temos a leitura silenciosa fortalecida, a leitura intensa e profunda, com retornos aos clássicos gregos, nas universidades a leitura é mais extensa, e, já nessa época, com características de fragmentação tão frequentes nas observações dos estudiosos das práticas de leitura de nossos dias. Acompanhando essa busca por maior velocidade na leitura, para dar conta do crescente volume de informação impressa, o scriptio continua dá lugar à escrita com separação de palavras e sinais de pontuação, uma alteração com um profundo impacto na leitura.

Essas novas práticas e suportes pavimentavam o caminho para o Renascimento, em cujo início ocorre nada menos do que a invenção da prensa de tipos móveis, e a imensa proliferação de material de impresso. É certo que o livro impresso não se afastou muito de seu predecessor, o códice. Desse modo, não alterou significativamente a prática da leitura do ponto de vista individual, que é o objeto dessa pesquisa. Porém, é inegável que estendeu a prática a uma multidão que não tinha nenhum acesso a ela, pela simples morosidade e elevado custo da produção do material impresso até então.

Conjugada com fatores de ordem social e política, a popularização da leitura contribuiu sobremaneira para desencadear as reformas religiosas. Nesse período, conviveram a exaltação da liberdade individual, e consequente liberdade de leitura e publicação, particularmente da Bíblia, mas também de obras de outros gêneros, e a restrição dessa liberdade, manifesta pela tentativa de controle e proibição de certas leituras, incluindo a queima de livros e até a punição dos considerados dissidentes. As duas correntes só fizeram acelerar a difusão da prática da leitura, tornando-a definitivamente popular e sem possibilidade de controle. Aliado ao humanismo e ao positivismo, o livro atingiria sua época de ouro no final do século XIV, quando já se tornara um item absolutamente popular, contando com uma atenção que não era disputada com outras mídias de comunicação, que o futuro próximo traria: o rádio, a televisão, o computador e a Internet.

O computador trouxe o texto eletrônico, a maior revolução de suporte do texto desde a invenção do códice, e a Internet, a maior rede e comunicação jamais criada pelo homem. Com essa combinação de tecnologias, o texto passou conectar-se com outros textos, constituindo o hipertexto. Mais que hipertextos, hiperdocumentos, já que além de texto escrito, agregam som, imagens, animações, numa convergência quase absoluta de todas as formas de comunicação. O texto desmaterializa-se, e passa a ser uma ocorrência momentânea e efêmera, uma criação instantânea de um novo leitor, que é ao mesmo tempo senhor e refém do oceano de informações que vislumbra através da tela.

Simultaneamente a essa explosão de informação eletrônica, nunca tanto material impresso foi publicado. Paradoxalmente, o avanço do texto eletrônico não fez esvaecer a presença do texto impresso e seu maior representante, o livro, não obstante as muitas profecias que decretaram seu fim. Temos sim, diante desses vários universos, um leitor que busca desenvolver práticas que lhe dêem uma mínima percepção de conseguir encontrar neles os conhecimentos que busca. Ao fazê-lo, terá que lançar mão da experiência acumulada dos muitos leitores que o antecederam na história das práticas de leitura.

© Marco Antonio Simoes 2022