4. A prática da leitura no império romano

A cidade de Roma ficava na região conhecida como Lácio, ou Latium em latim, nome que remete aos latinos, povo do qual descendem os romanos, e que lhes legou o idioma. O Lácio, ilustrado na figura 14, é uma região de grande importância histórica, cultural e artística.

Anteriormente à habitação dos romanos, a região era dominada cultural e politicamente pelos etruscos, principalmente na região da atual Toscana. O alfabeto etrusco guarda muita semelhança ao alfabeto grego, e acredita-se que eles o tenham herdado dos gregos. Ao conquistar os etruscos, os romanos o utilizaram para escrever seu próprio idioma. Essa é uma das vias através da qual a influência grega teria chegado aos Romanos, por volta do século VII a.C. Outra possibilidade é a de os romanos terem tomado diretamente contato com a cultura grega por meio da colônia grega de Cumas, situada na região da Campânia, no século VIII a.C. O fato é que há grande similaridade entre os alfabetos grego e romano.

O último rei etrusco a governar Roma foi Tarquínio, deposto pelos cidadãos da região do Lácio em 509 a.C. que instauraram em seu lugar uma República aristocrática governada por um Senado composto pelos chefes das principais famílias. [1] Com os etruscos vencidos os romanos puderam expandir seus domínios.  

Figura 14 - Regiões italianas de Campânia, Toscana e Lácio, berço da língua latina.

A conquista da península itálica pelos romanos estava concluída por volta de 250 a.C., e, com ela, o idioma latino disseminara-se. Uma forte contribuição para a expansão e consolidação do idioma foi dada pela forma de conquista dos romanos. Suas colônias eram administradas pela capital do império, Roma, e eram ligadas a ela através de uma sólida rede de estradas [2] (via publica), algumas das quais existem até hoje. Conforme Staccioli, pelas estradas de Roma “passaram ideias, influências artísticas e filosóficas, e doutrinas religiosas”. [3] As técnicas da construção dessas estradas provavelmente tenham sido herdadas dos etruscos. A construção de uma das mais importantes delas, a Via Ápia [4], foi iniciada em 312 a.C., e seu nome vem da autoridade romana que ordenou sua construção, Ápio Cláudio Ceco. A Via Ápia ligava Roma à importante cidade portuária de Brindisi, na região da Puglia, sudeste da península itálica, banhada pelos mares Jônico e Adriático. Junto com ela, várias outras estradas constituíram uma extensa malha de comunicação que avançava com o império.

O tráfego constante possibilitado ao comércio, além da presença militar e da administração e Direito romanos, asseguraram a adoção do latim como idioma internacional, ao passo que o império grego perdia sua influência. A figura 15 ilustra o alcance do Império Romano em seu apogeu, em 117, com o imperador Trajano (53 – 117).

Figura 15 – Alcance do Império Romano em seu apogeu, atingido com o imperador Trajano (53 – 117). [5]

A adoção de uma língua única estabelecia vínculos de dependência determinantes para a estratégia de dominação romana. Ao mesmo tempo, à medida que se difundia, o latim também assimilava muito das culturas das áreas conquistadas. Já na língua literária do século III a.C., é possível observar no latim substratos linguísticos etruscos, gregos, germânico e ibero, entre outros. [6] Na época do imperador Trajano, Roma estendia seu domínio por todo o mediterrâneo e Bretanha, e, especialmente nas regiões onde a presença militar era marcante, os diletos autóctones acabaram por se decompor. Na parte oriental do império, porém, a adoção do latim foi mais lenta, sendo o grego (koiné) a língua dominante nos primeiros séculos do cristianismo.

Nos primeiros séculos do império de Roma, a utilização da escrita era uma atividade predominantemente dos sacerdotes e nobres. Entretanto, Veyne explica que a pode-se constatar três fatos sobre a alfabetização romana: havia iletrados que faziam outros empunharem a pena, havia gente do povo que sabia escrever e havia textos literários, clássicos, nos mais ínfimos vilarejos. [7] Por exemplo, até Catão, o Censor (234-149 a.C.), as formas dos textos restringiam-se a fins sagrados ou jurídicos. Diferente desta prática, Catão direciona a escrita para a educação da juventude, particularmente de seu filho Marcus, a quem compôs uma obra relatando a história de Roma, e o fez “em caracteres grandes” para que a leitura fosse mais fácil. [8]

Além dessa mudança de finalidade do texto escrito, com a tomada dos territórios gregos, a cultura grega passa a permear e a influenciar a cultura romana, dando à prática da leitura novas formas e sentidos em Roma, além de novos conteúdos. Essa assimilação da cultura grega influenciou a literatura latina, que passou a buscar inspiração nos autores gregos. A influência grega era tal que um romano não era considerado culto a menos que tivesse estudado e aprendido a literatura grega. Além desse aspecto cultural, de um ponto de vista mais material, os despojos de guerra contavam com inúmeras bibliotecas gregas completas. Observa-se com esse movimento uma alteração inclusive formal nos livros latinos, que passaram a adequar melhor as divisões de volumes e estrutura interna ao texto.

Quanto às alterações nas práticas de leitura, Plutarco relata que Catão de Útica (95 a.C. – 46 a.C.), bisneto do já citado Catão, o Censor, lia o Fédon de Platão logo antes de suicidar-se, o que indica fortemente dois aspectos. Inicialmente a presença da cultura grega, sendo essa o objeto de leitura num momento de profundo teor psicológico, sejam quais forem os significados que uma análise mais detida apontaria. Segundo, e não menos importante no contexto dessa pesquisa, o surgimento da prática da leitura doméstica. De fato, são inúmeras as referências a bibliotecas particulares. Cavallo cita Cícero [9] (106 a.C. a 43 a.C.), leitor desde a tenra juventude, figura 16, como possuindo duas, assim como a de seu irmão Quinto[10], a do próprio Catão de Útica, e também Ático [11] (110 a.C. a 32 a.C.)  e Varrão [12] (116 a.C. a 27 a.C.).

Figura 16 – O jovem Cícero lendo. [13]

Cícero relata fatos interessantes com respeito à popularização da prática da leitura e suas consequências. As atividades das livrarias, por exemplo, são citadas, e certos poetas desdenhados pelos especialistas contavam com um público fiel, a exemplo do que acontece hoje com certos best-sellers que não encontram na crítica respaldo significativo. Certas “doutrinas filosóficas pouco qualificadas” encontravam leitores entre o povo comum, de modesta condição social, composto de artesãos e outros profissionais, o que também nos remete à atual popularidade dos livros de autoajuda. A esse olhar crítico sobre a disseminação da leitura, é interessante acrescentar um comentário de Cícero feito numa carta a seu irmão Quinto, no qual ele se queixa dos livros latinos, “de tão defeituosos que são as copias que estão no comércio”. [14]  

Se, por um lado, identificamos já aí características que nos são familiares hoje, por outro lado é possível observar uma significativa disseminação da prática da leitura entre a população considerada menos favorecida material ou intelectualmente. Mais que isso, a leitura encontrava uma finalidade de prazer (voluptas), além da que já lhe era associada, isto é, a função informativa (utilitas). Esse caráter duplo é evidenciado na única coleção que chegou consideravelmente intacta até nós. Trata-se da Vila dos Papiros, uma biblioteca particular evidentemente de propriedade de um habitante rico da cidade de Herculano, soterrada pelas lavas do Vesúvio em 24 de agosto de 79 d.C., juntamente com a vizinha Pompeia. A análise das obras permite concluir que ela fora dividida em duas sessões principais: uma sessão profissional, principalmente composta por obras gregas de filósofos epicuristas, e uma sessão latina, de leituras variadas.

Sempre influenciada pelo modelo grego, a prática da leitura no mundo romano seguirá aprofundando essa categorização: a produção de livros de alta qualidade editorial – seja pelo texto compilado com cuidados de especialistas, seja pelo acabamento esmerado e alta qualidade dos materiais empregados na encadernação – compartilhando o momento histórico com uma produção menos cuidada, mas com um alcance popular considerável. Esta categorização livreira é correspondente à categorização social. Conforme Cavallo, “[l]ivros e leitura estão, doravante, profundamente inseridos no mundo das representações que distinguem os grupos sociais”. [15]

Nesse movimento, as livrarias (tabernae librariae) tornam-se cada vez mais numerosas, não só como pontos de venda de livros, mas também como ponto de encontro de sociabilidade e conversas entre intelectuais. Conforme Cavallo, a iconografia e as descrições figurativas ilustram uma variedade de maneiras de ler. Algumas situações são formais, como um professor ocupado em uma leitura pessoal ou pública, ou um orador discursando. Outras, mais informais, retratam a leitura sendo realizada por um viajante em sua carruagem, ou de uma jovem sentada sob um pórtico. A leitura ganha, portanto, uma liberdade crescente.

A leitura, em geral, era uma operação lenta. Em grande parte, isso era devido ao tipo de letra adotado pelos copistas, muitas vezes cursivas e ricas em ligações que dificultavam a identificação rápida dos caracteres. Até o século I d.C., os livros separavam as palavras utilizando pontos (interpuncta), e logo a seguir, passaram a adotar a técnica grega da scripto continua, justapondo as palavras sem espaço algum. Isso exigia a articulação oral do texto para possibilitar sua leitura, o que se harmoniza com o fato de a leitura pública ainda ser proeminente. O verbo latino recitare refere-se não à citação de memória, mas “a dupla operação da vista e da voz”, e a recitatio era o “lançamento” de uma obra literária, e ocorria em locais públicos com auditórios e teatros, onde a obra era lida ao público.

Cavallo registra também a prática romana da leitura ancilar, realizada domesticamente por um lector, que poderia ser um escravo. Tal atividade era comum nas casas nobres, e muitas leituras eram realizadas em conexão com reuniões e banquetes, visando, mais do que a leitura, possibilitar um ambiente de sociabilização, consolidação de amizades e relacionamentos, ou mesmo a inserção de ricos emergentes nas camadas mais altas da sociedade. A prática da leitura desempenhava assim um papel fundamental na estrutura social romana. No plano individual, a evidência disponível demonstra que a leitura silenciosa era praticada mais por opção pessoal do leitor do que por uma escolha conscientemente feita na busca de um refinamento no contato com o texto. A leitura sussurrada era praticada também pelos mesmos motivos.

Dessas várias formas, um “novo leitor” passa a caracterizar-se nos primeiros séculos do Império Romano. Mais exatamente, uma diversidade de práticas de leitura passa a verificar-se. Além das classes que tinham a leitura por força da função, como professores, funcionários civis e técnicos, a leitura passa a ser praticada por prazer, hábito ou prestígio, por um público mais diversificado. Embora “sempre com um livro nas mãos”, esse público nem sempre alcançava compreensão suficiente para os textos mais difíceis. Não constituíam, entretanto, uma coletividade homogênea, e eram referenciados pelos autores como vulgus, plebs, media plebs, plebeia manus, [16], um público doravante anônimo, com diferentes graus de instrução.

Nesse contexto, há que assinalar-se um crescente público feminino de leitoras, particularmente na época de Augusto, embora o início de sua existência não tenha se dado de modo pacífico.  Juvenal[17] sintetizou a opinião de alguns autores ao dizer que é melhor que uma mulher não compreenda muito aquilo que lê nos livros, visto que “nada é mais insuportável do que uma mulher instruída”. Em contrapartida, outros autores buscaram atender a essa nova demanda, notadamente Ovídio[18]. Este trata de incluir em suas histórias personagens femininos com os quais esse público podia identificar-se, além de obras como um tratado de cosmética chamado Medicamina Faciei, a obra Arte de Amar, em particular o terceiro volume, dirigido especificamente às mulheres, visando ensiná-las a atrair os homens, e Remedia Amoris, consagrado aos tormentos de amor das mulheres. Como parte do universo de leitores, as mulheres passam a ser representadas no ato de ler, como se pode constatar em pinturas e sarcófagos preservados. Devido ao fato de que as mulheres dispunham de tempo, uma vez que eram dispensadas de muitas atividades, e também de possuírem um espaço próprio e privativo, a prática da leitura incorporou-se facilmente ao seu mundo, especialmente a leitura silenciosa.

O empenho de Ovídio em atingir o público feminino é apenas um exemplo de uma tendência verificada entre muitos autores da época: a preocupação em capturar a atenção do leitor. O público leitor era agora muito maior e mais diversificado. Conforme Poirier, o “livro penetra na vida de cada um, mesmo que não saiba ler, em vez de ser uma coisa misteriosa, e havia em Atenas livros à venda e lugares determinados para vendê-los” [19]. Assim, encontramos em suas obras instruções que auxiliariam o leitor na compreensão de seu texto. Plínio, o Velho, [20] atua de modo semelhante, iniciando sua História Natural com indicações visando tornar o vultoso trabalho acessível ao humilde vulgus.

O esforço por alcançar o leitor, além de mudanças no estilo do texto, contribuiu sobremaneira para o desenvolvimento de um formato que fosse mais acessível e portável do que o rolo. Data do primeiro século o início da substituição do rolo (volumen) pelo códice (codex). A substituição ocorreu lentamente, e os últimos rolos datam, no mais tardar do final do século III [21] e do início do século IV, ao passo que um dos códices mais antigos conservados é o De bellis Macedonicis, do século I ou II A evidência indica que o códice foi adotado mais rapidamente na parte grega do Império Romano, e, não por coincidência, os cristãos contribuíram notoriamente para sua adoção, a tal ponto que é possível que eles tenham sido os inventores do códice.

Sobre o fato de que os cristãos, se não foram eles mesmos os inventores do livro de folhas, tomaram a dianteira no seu uso, Goodspeed diz:

 “Havia homens, na primitiva igreja, vivamente alertas quanto à parte desempenhada pela editoração no mundo greco-romano, os quais, no seu zelo de espalharem através daquele mundo a mensagem cristã, aproveitaram-se de todas as técnicas de editoração, não só as antigas e tradicionais, bem batidas, mas as mais recentes e mais progressivas, e fizeram uso delas ao máximo, na sua propaganda cristã. Ao fazerem isso, começaram a usar, em ampla escala, o códice, agora em uso universal. Seu evangelho não era um mistério esotérico e secreto, mas algo que devia ser proclamado de cima das casas, e ocupavam-se em levar a efeito o antigo lema dos profetas: ‘Publicai as boas novas.’ A escrita dos evangelhos já por si só foi, naturalmente, uma grande coisa, mas, sua compilação, junto com sua publicação como uma coleção, foi uma medida totalmente diferente, e uma de quase tanta importância quanto a escrita de alguns deles.” [22]

É possível atribuir, se não a invenção, a rápida adoção do códice pelos cristãos, à adequação do códice às práticas de leitura necessárias a eles. Inicialmente, o cristianismo nasceu numa nação em que a palavra escrita já tinha uma valorização consolidada. O códice trazia uma praticidade para estudo e pesquisa superior ao rolo. Sua produção era de menor custo, o que tornava os escritos acessíveis a camadas mais variadas da população, uma característica importante para os cristãos do primeiro século, especialmente em face do fato de que sua organização visava fundamentalmente a propagação dos novos ensinamentos.  Conforme explicado anteriormente, o códice apresentava importantes aprimoramentos para a prática de leitura cristã.

Voltando ao âmbito histórico, o estabelecimento de um sistema viário amplo e eficiente, a imposição do latim como lingua franca, e a presença marcante do exército (“uma máquina de romanizar”) garantiram a supremacia política e cultura do Império Romano por muito tempo. Porém, com a morte do imperador Marco Aurélio, no ano 180, tem fim um longo período de paz, e vários historiadores assinalam essa época como o início do declínio do Império Romano. Marco Aurélio escolheu para sucedê-lo não o homem mais habilitado, como o fizeram os quatro imperadores que o antecederam (sendo esse período de 96 a 180, conhecido como a era dos Cinco Bons Imperadores). Escolheu seu despreparado filho Cómodo [23].

Cómodo deu início a uma série desastrosa de imperadores, inicialmente da dinastia dos Severos, de 193 a 235, e prosseguindo pela “Crise Imperial” de 235 a 284. Em 285 após um período de conturbação civil, Diocleciano assume o poder e restabelece uma ordem relativa, ao, em 286 , dividir o império. Colocou a parte ocidental, com capital em Roma, sob o controle de Maximiano, ao passo que ele mesmo manteve o controle do Império Romano Oriental, com sede inicialmente em Nicomédia, na Turquia, e posteriormente Bizâncio, que seria conhecida posteriormente como Constantinopla.

Diocleciano estabeleceu uma forma de governo chamada “Tetarquia”, na qual havia dois Augustos, ou Imperadores Seniores, e dois Césares, ou dois Imperadores Juniores, reportando-se aos Augustos. Ele próprio tinha Galério, da Trácia, como seu César, e Constâncio Cloro era o César de Maximiano.

A administração de Diocleciano foi marcada por uma severa redução das liberdades individuais. O custo de sua máquina governamental era muito alto, o que resultou num grande aumento dos impostos, levando os cidadãos a mudarem de domicílio ou ocupação, como forma de escapar deles. Para impedir esse esforço, Diocleciano determinou que os camponeses devessem permanecer nas suas terras, e que os profissionais não podiam mudar de atividade, sendo obrigados a ensinar suas habilidades a seus filhos. Seu objetivo era manter estacionária a estrutura econômica do Império.

Diocleciano buscou também reavivar tradições romanas já em decadência, como o culto a antigos deuses. Empreendeu uma forte campanha contra os cristãos, liderando a penúltima grande perseguição do Império contra eles, no que alguns historiadores chamam de “a era dos mártires”. Numa das ofensivas, em 23 de fevereiro de 303, na Nicomédia, numa festa em homenagem ao deus romano Término, Diocleciano atacou o lugar de reunião da comunidade cristã, que se distinguiu por se ausentar da festa, saqueou o lugar, queimou todas as Bíblias e por fim, demoliu o prédio. [24]

Diocleciano formalizou sua campanha contra os cristãos em quatro editos. No primeiro deles, promulgado no dia seguinte ao ataque de Nicomédia, ordenou que todos os prédios de propriedade dos cristãos fossem demolidos, todos os funcionários cristãos fossem demitidos e todos os livros cristãos, queimados. O segundo edito ordenou que todos os bispos, presbíteros e diáconos fossem presos, e pelo terceiro edito, podiam ser torturados para forçá-los a participarem em sacrifícios às deidades romanas. Finalmente, o quarto edito tornou a profissão do cristianismo um crime capital.

A resultante onda de brutalidades produziu uma classe chamada de “traditores” (que significa: “os que se renderam”), traidores de Deus e de Cristo, que tentavam garantir a vida por entregarem seus exemplares das Escrituras. Segundo o historiador Will Durant[25], “subia a milhares o número dos [cristãos] que renegaram seu credo. [...] Mas em sua maioria permaneceram firmes; e a contemplação ou o conhecimento de tão heróica fidelidade em meio aos tormentos fortaleceu a fé dos vacilantes e conquistou novos adeptos às congregações perseguidas”.

Em 305 Diocleciano, doente, abdicou do cargo juntamente com Maximiano, e Galério, seu anterior César, tornou-se o Augusto do Império Romano do Oriente e Constâncio Cloro tornou-se o Augusto do Império Romano do Ocidente. Nessa ocasião, o filho de Constâncio Cloro, Constantino[26], lutava na região do Danúbio, sob as ordens de Galério. Em 306, porém, Constantino retorna para junto de seu pai enfermo. Com a morte de seu pai, Constantino é proclamado imperador. Entretanto, a consolidação de seu domínio deu-se através de muitas batalhas civis, de 306 a 324, já que o poder era também reivindicado por vários outros autoproclamados Augustos.

Atribui-se à Batalha da Ponte Mílvio uma grande importância histórica para o avanço do cristianismo uma vez que Constantino atribuiu a vitória sobre seu rival Maxêncio nessa batalha ao “Deus cristão”. Embora controversial, há o relato de que, durante aquela campanha, Constantino teria visto sob o Sol uma cruz flamejante com as palavras latinas In hoc signo vinces, ou seja, “com este sinal vencerás”. Afirma-se também que, num sonho, Constantino recebeu a ordem de pintar as primeiras duas letras do nome de Cristo, em grego, nos escudos das suas tropas. Esses relatos têm muitos anacronismos, e existem muitas contradições sobre o lugar de sua ocorrência e os detalhes exatos dessa suposta visão. [27]

Em Roma, o Senado acolheu Constantino e declarou-o principal Augusto e Pontifex Maximus (Sumo Pontífice), isto é, sumo sacerdote das religiões pagãs do império. Em 313, Constantino fez um acordo com o Imperador Licínio, governante das províncias orientais e, através do Edito de Milão, ambos garantiram liberdade de religião e direitos iguais a todos os grupos religiosos. Dentro dos próximos dez anos, Constantino derrotou seu último rival, o próprio Licínio, e se tornou governante incontestado do mundo romano.

Sempre com vistas à manutenção da unidade do império, em 325, Constantino convocou e presidiu o primeiro grande concílio ecumênico da Igreja, o Concílio de Niceia, que reuniu 318 bispos da Igreja, e estabeleceu as crenças essenciais no chamado Credo de Niceia. A principal disputa doutrinal deu-se entre os arianos[28] e os trinitaristas. Os primeiros em sua maioria do império oriental, negando a consubstantialidade entre Jesus e Deus, e os últimos, representando mais fortemente o império Ocidental, liderados por Atanásio, defendendo a atualmente chamada doutrina da Trindade, segundo a qual “o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus. Contudo não são três deuses, mas um Deus” [29].

Observando que os trinitaristas eram em maior número, Constantino decidiu-se a favor deles, e Ário juntamente com os sacerdotes que permaneceram fiéis a ele, foram exilados para Ilírica, território correspondente à Iugoslávia ocidental hodierna. Os escritos de Ário foram tomados, queimados, e, sob pena de morte, todos foram avisados a não possuir nenhum deles. Entretanto, sempre visando primariamente a unidade política do império, Constantino mudou de posição, ora banindo os trinitaristas ora os arianos, conforme a melhor conveniência. Em 330, Constantino tornou a cidade de Bizâncio a capital do Império Romano Oriental (ou Império Bizantino), mudando seu nome para “Nova Roma”. O nome não vingou, e a cidade ficou conhecida como Constantinopla, nome que perdurou até ser tomada pelos otomanos em 1453, quando passou a ser chamada de Istambul.

A importância de Constantinopla da história da leitura é enorme. Situada exatamente na principal rota comercial, constituía um “caldeirão de elementos heterogêneos”, com 72 línguas representadas. O idioma mais falado era o grego, assim como a maior parte da influência cultural. Entretanto, o direito, a organização militar, fiscal e estatal eram de Roma. Em Constantinopla, Constantino fundou uma Universidade, que seria posteriormente ampliada por Teodósio [30].

Constantino teve uma doença terminal em 337 EC, sendo batizado pouco antes pelo bispo ariano Eusébio. Depois da sua morte, o Senado o incluiu entre os deuses romanos. Deixou três filhos, Constantino II, Constâncio e Constante. Após lutarem entre si, Constâncio, ariano convicto, assumiu o poder, com a morte dos irmãos trinitários, gradualmente assumiu o controle do Império Ocidental e Oriental. Seu apoio aos arianos garantiu sua prevalência durante o tempo de seu poder.

Entretanto, após sua morte, os trinitaristas voltaram a impor seu credo na Igreja. Vários fatores contribuíram para isso, sendo um deles o fato de que os reis trinitários eram mais propensos ao uso da violência para impor o credo, ao passo que o os arianos eram mais tolerantes. Além disso, os trinitaristas organizaram melhor suas crenças que os arianos, que apresentavam divisões entre si. Um terceiro fator, bastante ligado às práticas de leitura da época e posteriores, foi o estabelecimento da vida monástica, que impunha o celibato e a habitação em mosteiros. [31] Esses mosteiros tornaram-se fortalezas do trinitarismo, contrastando-se com os invasores germânicos, que haviam abraçado ao arianismo graças a trabalho do bispo ariano Úlfilas (310 – 388), bispo ordenado por Eusébio de Nicomédia, missionário e tradutor. [32]

Não há consenso entre os historiadores quanto ao real papel de Úlfilas na defesa do arianismo entre os godos e outros povos bárbaros, mas, é certo que em seu trabalho missionário ele criou um alfabeto, baseado no alfabeto grego, chamado de “gótico” (de godos), que utilizou para verter a Bíblia do grego para a língua dos godos. Partes dessa tradução ainda estão preservadas e constituem o Códice Argenteus, assim chamado por ter sido escrito com letras prateadas, figura 17, e que contém os quatro evangelhos, Mateus, Marcos, Lucas e João. Esse importante documento foi descoberto na forma de um palimpsesto, isto é, fora produzido em pergaminho e depois raspado, para reaproveitamento, conforme processo explicado anteriormente. A raspagem mal-feita permitiu que fosse decifrado.

Figura 17 – Codex Argenteus, onde foi utilizado o alfabeto gótico. [33]

 

 O Códice Argenteus apresenta na base de cada coluna quatro arcadas, dentro das quais se podem ler os nomes dos autores dos evangelhos em letras douradas, e também referências a relatos paralelos entre os evangelhos, representando uma das mais antigas ocorrências de hipertexto.

O trabalho de Úlfilas e talvez de outros missionários, influenciaram vários povos bárbaros a abraçarem o arianismo. Assim, as invasões bárbaras fortaleceram os trinitários, já que o arianismo estava associado aos “invasores”. Conforme já citado, os monastérios constituíram então uma grande resistência ao avanço do arianismo, tendo as práticas de leitura e escrita um relevante papel.

Roma não pode resistir às sucessivas invasões bárbaras, e, em 476, capitulou diante de Odoacro, rei da tribo germânica dos hérulos, depondo Rômulo Augusto, e tornando-se o primeiro rei bárbaro do Império Romano Ocidental. Para muitos historiadores, esse evento marca o início da Idade Média, com a pulverização do Império Ocidental em vários reinos feudais. Conforme explica Gontijo, “só uma força permaneceu unida – a cristandade. Os bizantinos souberam utilizá-la para fortalecer o Estado e assegurar a unidade do Império Romano do Oriente”.

Ao passo que no Império Ocidental o saber era gerado apenas nos mosteiros, no Império Bizantino, durante um milênio, a literatura secular florescia muito mais abertamente, e em muitas formas: romances de aventura e de amor, sátiras e poesia, que combinavam um conteúdo influenciado pelos cristãos, num formato fortemente grego. Da riqueza literária dos bizantinos originou-se muito das histórias nacionais dos russos, búlgaros, iuguslavos e húngaros [34].


[1] GONTIJO, Silvana. O Livro de Ouro das Comunicações,  p. 92.

[2] STÖRIG, Hans Joachin. A Aventura das Línguas: uma história dos idiomas do mundo, p. 85.

[3] STACCIOLI, Romolo Augusto. The Roads of the Romans.

[4] “Appia longarum teritur regina viarum” (A Via Ápia é conhecida como a rainha das longas estradas. - Publius Papinius Statius, poeta romano, 45-96 d.C.).

[5] Fonte: Perry-Castañeda Library Map Collection.

[6] GONTIJO, Silvana. Op. cit., p. 69.

[7] VEYNE, Paul. O Império Romano. In ARIÈS Phillipe; DUBY, Georges. História da Vida Privada. Vol. 1, p. 31.

[8] PLUTARCO. Caton l’Ancien 20, 7. Apud CAVALLO, Guglielmo.  Entre Volumen e Codex. In História da Leitura no Mundo Ocidental, p. 72.

[9] Marco Túlio Cícero, expoente da oratória clássica, famoso pela paixão e capacidade de improvisação, foi educado pelo jurista Múcio Cévola.

[10] Quintus Túlio Cícero, educado junto com seu irmão, autor de várias tragédias, poemas, cartas e um manual de oratória.

[11] Tito Pompônio Ático, principal amigo de Cícero, grande amante das letras. Com sua riqueza, mantinha uma equipe de escravos treinados como copistas e encadernadores.

[12] Marcus Terentius Varro, filósofo e gramático, cujas ideias são conhecidas por meio de Cícero, que o classificou como “o mais educado dos romanos”, e por Agostinho.

[13] Fonte: Portal Answers.com. Cícero.

[14] FISCHER, Steven Roger. História da Leitura, p. 66.

[15] CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER Roger. Op. cit., p. 77.

[16] CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER Roger. Op. cit., p. 84.

[17] JUVENAL. Sátira 6, 460.

[18] Publius Ouvidius Naso (43 a.C.-17 d.C.) Poeta latino, expulso de Roma por Augusto, no ano 8 d.C., por causa da obra A Arte de Amar, que a considerou imoral.

[19] POIRIER, Jean. História dos Costumes. Vol. 1, O Reino Humano. Cap. III, O Homem e o Livro, p. 177.

[20] Gaius Plinus Secundus,  (23 d.C.-79 d.C.). Almirante e um dos mais importantes naturalistas da antiguidade, morreu pelos gases venenosos do Vesúvio ao aproximar-se para explorá-lo.

[21] Quando não houver indicação, a data refere-se ao período d.C.

[22] GOODSPEED, E. J. Christianity Goes to Press. 1940 p. 75. Apud Estudo Perspicaz das Escrituras, v. 2, p. 711.

[23] Marcus Aurelius Commodus Antoninus (161 d.C.-192 d.C.), perpetuado como vaidoso, libertino e amante das lutas de gladiadores, considerava-se uma reencarnação de Hércules.

[24] GONZALES, Justo L. Gonzáles. A Era dos Mártires, p. 164.

[25] Apud Watchtower Library. w1992 15/06. Diocleciano ataca o cristianismo. 2006 CD-ROM.

[26] Flavius Valerius Constantinus, 272 d.C. - 337 d.C.

[27] JOHNSON, Paul. A History of Christianity.

[28] Assim chamados pela relação com Árius (256 d.C. – 336. d.C.), presbítero de Alexandria, principal defensor da doutrina.

[29] RYRIE, Charles C. Teologia Básica ao Alcance de Todos, p. 64.

[30] GONTIJO, Silvana. O Livro do Ouro das Comunicações, p. 108.

[31] HEALY, Patrich J. Catholic Enciclopedia, verbete Ulfílias.

[32] MACLEAR, George Frederick. A History of Christian Missions During the Middle Ages,  p. 38.

[33] Fonte: Portal Answers.com. Codex-Argentus.

[34] GONTIJO, Silvana. O Livro de Ouro das Comunicações, p. 108.

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