4. Práticas de leitura nos novos suportes | História da Leitura

4. Práticas de leitura nos novos suportes


O nascimento de novas tecnologias, historicamente, vem sempre acompanhado de temores. Segundo Platão, em Fedro, quando Hermes, suposto inventor da escrita, apresentou-a para o Faraó Thamus, este expressou temor de que ela acabaria com a capacidade da memória, “o maior dom que precisa ser mantido vivo” [1]. Muitos séculos depois, Victor Hugo (1802 – 1885), em sua imortal obra Notre Dame de Paris, mostra-nos o padre Claude Frollo diante de um livro impresso, na época do romance (1482) uma nova tecnologia, e apontando primeiro para ele, e depois para sua amada catedral, sentenciou: ceci tuera cela – “isso matará aquilo”, isto é, o livro matará a capacidade imagética e a perenidade da catedral. Em relação ao livro manuscrito, o livro impresso também foi encarado com forte suspeita, no temor de que ele romperia a familiaridade entre o autor e seus leitores [2].

Diante destes poucos exemplos históricos, é fácil entender que não seria diferente com o advento das tecnologias digitais. Já nos anos 60, Marshall McLuhan escrevia a clássica obra A Galáxia de Gutenberg, onde considerava que a forma global de percepção produzida pelas imagens da televisão e outros dispositivos substituiria a forma linear de pensar, filha da invenção da página impressa. “Quais serão as novas configurações do mecanismo e da cultura letrada ao serem essas formas mais velhas de percepção e julgamento invadidas pela nova idade da eletricidade?”, perguntava ele. Prossegue: “[a] nova galáxia elétrica de eventos já penetrou profundamente dentro da galáxia de Gutenberg. Mesmo sem colisão, essa coexistência de tecnologias e de estados de consciência leva a traumas e tensões todas as pessoas vivas”.

Acrescente-se o fato de que as tecnologias digitais não afetam apenas alguns processos de comunicação, senão todos. Lévy, tratando da relação entre a educação e a cibercultura, afirma que esta última promove uma “mutação contemporânea da relação com o saber” [3]. Nessa mesma linha, Chartier, reconhece que “essas mudanças [ocasionadas pelas novas tecnologias] comandam inevitavelmente, imperativamente, novas maneiras de ler, novas relações com a escrita, novas técnicas intelectuais” [4].  Desse universo de mudanças, algumas das práticas emergentes serão discutidas a seguir.

O advento dos novos suportes do texto deu-se de modo muito rápido em relação aos desenvolvimentos anteriores do livro. O papiro foi usado por cerca de dois mil e quinhentos anos, e, mesmo depois do advento do pergaminho, ainda foi usado por quase mil anos. Demorou vários séculos para que o rolo fosse totalmente suplantado pelo códice, e embora a invenção de Gutenberg tenha ocorrido no século XV, até o século XIX ainda eram produzidos livros manuscritos. Em contrapartida, poucas décadas separam a criação do serviço WWW para sua utilização por milhões de usuários em todo mundo.

Assim, vivemos na confluência de uma cultura de práticas de leitura que é herdeira de milênios de experimentações com uma emergência explosiva de novos suportes, que induzem o surgimento de novas práticas de leitura. Chartier lembra a profunda mudança que o advento do códice representou para as práticas de leitura, e como ele, lenta, mas inelutavelmente se impôs sobre o rolo, e analisa:

Devemos pensar que nos encontramos às vésperas de uma semelhante mutação e que o livro eletrônico irá substituir ou já está substituindo o codex impresso, tal como o conhecemos em suas diversas formas: livro, revista, jornal? Talvez. Porém, o mais provável para as próximas décadas é a coexistência, que não será forçosamente pacífica, entre as duas formas do livro e os três modos de inscrição e de comunicação dos textos: a escrita manuscrita, a publicação impressa, a textualidade eletrônica. Essa hipótese é certamente mais sensata do que as lamentações sobre a irremediável perda da cultura escrita ou os entusiasmos sem prudência que anunciavam a entrada imediata de uma nova era da comunicação. [5]

Farbiatz e Nojima respaldam essa afirmação de Chartier, e identificam três fatores que a justificam. Inicialmente, há um “repertório constituído sobre o livro impresso que não foi transferido para sua versão digital, causando dificuldades na absorção do livro eletrônico por seu público potencial”.  Um segundo aspecto refere-se à percepção do leitor do texto impresso e do texto digital. Ao passo que o primeiro é associado á imutabilidade, o segundo é associado à mutabilidade (e, portanto, confiabilidade) [6].  Esta característica nos remete infalivelmente ao clássico 1984 de George Orwell, na qual a história era constantemente “reescrita” através nas informações propagadas pela visionária “teletela”.

Esse ponto de vista é corroborado por Furtado, que considera o papel e a tinta como um equilíbrio útil: “suficientemente leves para serem portáteis, mas suficientemente fixos para serem imutáveis”. O mundo digital contrapõe-se a essa imutabilidade, sendo que muitas páginas na Web mudam constantemente [7]. Adicionalmente, Furtado cita Burbules, para quem alguns fatores tornam a credibilidade da Internet e da Web particularmente complexa. Inicialmente, pode haver milhares, ou até milhões, de fontes para a mesma informação, sendo comuns as divergências. Além disso, a Internet é um sistema autossustentado, em que muitas informações originam-se dela mesma. Finalmente, a velocidade com que as informações fluem em seu interior dificulta a credibilidade delas.

O terceiro fator proposto por Farbiatz e Nojima como sustentadores da presença do livro tradicional é sua significação sociocultural bastante elevada, transferindo ao seu portador um status bastante elevado. Chartier relata essa relação histórica entre o livro e o leitor, em que, por vezes, a encadernação recebia maior atenção que o conteúdo, pelo significado do objeto livro [8]. Alessandra El Far atribui a insistência de D. João VI em trazer a principal biblioteca de Portugal para o Brasil, em 1808, não a um capricho passageiro. Ao contrário, “na história mundial grandiosos acervos de livros ajudavam a conferir prestígio e poder aos governantes” [9]. A transferência do significado do objeto livro para seu portador é bem ilustrada na seguinte experiência relatada por Farbiatz e Nojima:

Dietzsch (2001), professora pesquisadora da faculdade de educação da USP, apresenta um relato pessoal esclarecedor da realidade social brasileira. Segundo a professora, quando estava em um ônibus no trajeto entre a universidade e sua residência, o coletivo foi parado por policiais que, imediatamente, passaram a revistar os passageiros negros. Um deles, no entanto, não foi nem sequer abordado pelos policiais, pois levava em seu colo um grosso livro. Ao término da revista, Dietzsch, já imbuída de seu papel de pesquisadora, perguntou ao rapaz sobre o livro que levava. Este revelou que, na verdade, não era para sua leitura, mas, unicamente, para sua segurança no trajeto rotineiro em coletivos da grande metrópole paulista. [10]

Essas razões concorrem para a previsão de Chartier da “coexistência nem sempre pacífica” entre os vários suportes. Indo mais além, Chartier considera que “haverá duas formas de publicação: a que vai continuar a oferecer textos abertos, maleáveis, gratuitos, e a que resultará de um trabalho editorial que necessariamente fixará e fechará os textos publicados para o mercado”. Quanto ao suporte para esses dois grupos ele acrescenta que “talvez dois tipos de aparelhos vão corresponder a cada uma dessas formas: o computador tradicional para a primeira, e o e-book, que não permite o transporte, a cópia ou a modificação dos textos, para a segunda” [11].

Similarmente, Furtado conceitua:

No corpus em construção da edição eletrônica encontramos basicamente dois gêneros de textos: por um lado, representações derivadas ou secundárias de livros impressos e publicados ou de textos pensados primariamente para publicação impressa (a que Geoffrey Nunberg chama “versões eletrônicas”); por outro, publicação de textos eletrônicos pensados e concebidos para se moverem em suportes eletrônicos desde o seu início, que exploram as capacidades específicas do universo digital, ligados à vulgarização de ambientes hipertextuais e que questionam algumas das noções tradicionalmente atribuíveis aos textos da cultura do impresso. (...) Acontece que, neste momento, todos estes desenvolvimentos coexistem, o que confirma que, no interior das próprias inovações tecnológicas, os movimentos não são uniformes nem síncronos e que a mesma invenção pode conter diversas evoluções e potenciais utilizações. [12]

Assim, com essa “coexistência nem sempre pacífica” entre os vários suportes, e, portanto, as várias práticas de leitura, esse estudo fará considerações sobre a prática da leitura de hipertextos, seus efeitos na leitura na Internet, e finalmente sobre a leitura de livros eletrônicos.

Com respeito à leitura de hipertextos, conforme explicado no item 3, ele difere grandemente em sua estrutura do texto, em particular no aspecto da linearidade. Ao passo que um texto tradicional é um conjunto de parágrafos sucessivos, cuja leitura usualmente se faz de modo contínuo e linear, um hipertexto é um conjunto de dados textuais que, modernamente, possuem um suporte eletrônico e podem ser lidos de maneiras diferentes, em grande parte a critério do leitor. O texto propõe um caminho fixo, enquanto o hipertexto permite a construção progressiva desse caminho [13].

A estrutura completa de um conjunto de hipertextos não é aparente ao leitor. Ele descobrirá essa estrutura à medida que realizar as atividades intrinsecamente propostas pelo hipertexto. Rosenberg [14] divide essas atividades de leitura de um hipertexto em camadas, a saber, actema, episódio e sessão.

O actema é atividade mais elementar no hipertexto, tal como seguir um link. Pode ocorrer quando o leitor clica em uma âncora, que pode ou não ser um texto, quando o leitor escolhe um item em um menu ou dispositivo semelhante, ou ao clicar sobre partes de um mapa ou gravura. Vários actemas combinados constituem um episódio. Um episódio, portanto, é um grupo de actemas que formam um conjunto coerente na mente do leitor. Esse conjunto poderá corresponder apenas a uma parte dos actemas possíveis de um hiperdocumento. A identidade do episódio é menos clara que a do actema. O actema guarda uma estreita relação com as âncoras de uma lexia, ao passo que o episódio é uma estrutura formada na mente do leitor, que satisfaz sua necessidade ou curiosidade temporal. Como o episódio é construído por exploração, nem todos os actemas testados farão parte dele. De fato, a leitura de um hipertexto pode ser descrita como a busca de um episódio, na qual vários actemas são experimentados até que um conjunto deles forme uma unidade coerente de informação.

É possível, então, estabelecer-se uma distinção entre a lexia e o documento virtual representado pelo episódio. As lexias são facilmente relacionadas aos documentos, ou, no jargão da Internet, às páginas acessadas. Entretanto, apenas parte, ou partes, dessas páginas irão ser colhidas como parte do episódio. O episódio sim constituirá na mente do leitor um documento virtual. Na maioria dos casos a leitura de hipertextos resultará em mais de um documento virtual. É possível que vários episódios resultem da experiência, e que o leitor estabeleça entre os vários episódios algum tipo de estrutura.

A delimitação clara dos contornos de um episódio ou a relação entre eles é uma questão muito complexa, uma vez que depende de muitas variáveis. O desenho e a disposição dos elementos na lexia afetam a forma como ela é percebida pelo leitor. A maior ou menor presença de elementos de navegação afeta o estabelecimento de caminhos que favorecerão a constituição de um ou mais episódios.

O registro do caminho percorrido também pode facilitar a construção do documento virtual. Entretanto, talvez por uma forte ligação com o texto impresso, a operação de salvar (save) normalmente armazena ou a página (lexia) inteira, ou um conjunto não relacionado de endereços (bookmarks). Entretanto, o leitor deveria ter a possibilidade (e a preocupação) de salvar também o episódio, que, em última análise, constitui o documento virtual. Essa operação não é normalmente disponibilizada.

Navegando entre esses mecanismos e sendo também guiado por eles, o leitor procurará determinar os contornos de seu documento virtual. Em algum ponto a construção desse documento, ou conjunto de documentos será concluída, tendo o leitor, assim, estabelecido o fim da sessão. Esse ponto pode ser atingido por mais de uma razão. Rosenberg cita o estudo da pesquisadora Douglas [15], que identifica as seguintes causas para o encerramento de uma sessão: uma causa externa, alheia ao controle do leitor, circunstância na qual o registro do episódio seria de especial importância; desistência na busca, ocasionada por sucessivas tentativas infrutíferas de compor um documento virtual; sensação de completude, na qual, ainda que todo o conjunto não tenha se formado, o leitor se dá por satisfeito com o obtido, e, finalmente, a percepção do leitor de ter atingido o ponto de sucesso, em que ele apreende mentalmente o quadro completo correspondente à sua busca.

Não obstante a possível riqueza de conteúdo e de experiência que o hipertexto proporciona, a descrição de Rosenberg demonstra que a prática de leitura nesse ambiente é bastante complexa, e exige um alto grau de interatividade e capacidade crítica do leitor. É verdade que, conforme demonstrado, os elementos constituintes de um hipertexto são anteriores ao ambiente computacional, e, em certa medida, podemos aplicar o conceito de actema/episódio/sessão a eles, por exemplo, numa pesquisa enciclopédica. Também aqui, a busca pode ser errática, ou sem fim. Entretanto, conforme considera Lévy, o que torna o hipertexto eletrônico especialmente propício a essa possibilidade é a velocidade com que ele pode ser operado. O clique no mouse em um link e a apresentação de uma nova lexia é uma operação que leva menos de um segundo. Como uma consequência, diz ele, “nos perdemos muito mais facilmente em um hiperdocumento do que em uma enciclopédia. A referência espacial e sensoriomotora que atua quando seguramos um volume nas mãos não mais ocorre diante da tela, onde somente temos acesso direto a uma pequena superfície vinda de outro espaço, como que suspensa entre dois mundos, sobre a qual é difícil projetar-se” [16].

Santaella concorda com essa possibilidade ao atribuir ao leitor a inteira responsabilidade pelos caminhos escolhidos. Tanto mais caminhos possíveis haverá quanto mais rico e coerente for o desenho da estrutura. Ela acrescenta:

A grande flexibilidade do ato de ler uma hipermídia, leitura em trânsito, funciona, contudo, com uma faca de dois gumes. Ela pode se transformar em desorientação se o receptor não for capaz de formar um mapa cognitivo, mapeamento mental do desenho estrutural de um documento. (...) transitar pelas infovias pode produzir desconcerto e frustração se o internauta não conseguir ajustar os alvos pretendidos ao programa estrutural do documento. [17]

O hipertexto eletrônico, portanto, representa um espaço de leitura que representa potenciais sem precedentes, e, ao mesmo tempo, exige habilidades específicas que não se verificaram na história das práticas de leitura. Considerando que, conforme Lévy, a Web é “uma função da Internet que junta, em um único e imenso hipertexto ou hiperdocumento (compreendendo imagens e sons) todos os documentos que a alimentam” [18], as práticas de leitura no ambiente da Web serão consideradas a seguir.

O hipertexto é, de fato, um dos componentes essenciais de um ambiente virtual chamado de ciberespaço. O termo ciberespaço foi originalmente cunhado pelo escritor William Gibson em seu conto Burning Chrome, em 1982. Ele baseou-se no termo cibernética [19], conceito formulado pelo matemático Norbert Weiner, que o publicou em 1948 pelo MIT. Em 1989 o termo ciberespaço foi emprestado pela comunidade de usuários de computadores na crescente rede mundial de computadores para se referirem ao seu ambiente.

Esse conjunto de serviços que abriga, além dos hipertextos e da Web, bancos de dados enormes, ferramentas de comunicação, portais, textos, sons e imagens, realidade virtual, todos potencialmente disponíveis em tempo real, e todos suportados principalmente pela Internet, constitui um ambiente chamado de ciberespaço. Qual a relação do ciberespaço com a visualização da informação, com os meios de comunicação múltiplos, com a hipermídia? Santaella responde da seguinte maneira:

Ele se relaciona com todos, inclui a todos, pois tem a capacidade de reunir e concentrar todas essas faces em um objetivo comum. Nessa medida, o ciberespaço deve ser concebido como um mundo virtual global coerente, independente de como se acede a ele e como se navega nele. Tal qual uma língua, cuja consistência interna não depende de que os seus falantes estejam, de fato, pronunciando-a, pois eles podem estar todos dormindo, em um dado momento imaginário, o ciberespaço, como uma virtualidade disponível, independe das configurações específicas que um usuário particular consegue extrair dele. [20]

Estabelecido esse conceito de ciberespaço, que considerações se pode fazer sobre as práticas de leitura nesse universo?

Estudos importantes realizados por Jakob Nielsen demonstraram que, no ambiente Web raramente os leitores lêem palavra por palavra. É certo que na página impressa isso também não ocorra, mas, segundo Nielsen, na Web esse fenômeno é bem mais acentuado. Dos leitores pesquisados 79% apenas passam os olhos pela tela colhendo poucas palavras ou sentenças dispersas. Seu estudo aponta quatro causas para esse valor. Primeiro, a leitura na tela é 25% mais lenta do que a leitura em papel, usando as fontes tradicionais. Esse valor é de cerca de 20% com a utilização das fontes chamada ClearType, da Microsoft, conforme demonstrado por Dillon et all, da University of Texas at Austin [21]. Os dois tipos estão ilustrados no quadro 5 abaixo para fins de representação, uma vez que seu efeito é perceptível na sua plenitude apenas quando projetados na tela do computador.

Quadro 5 – Fonte Regular e ClearType



A morosidade na leitura da tela também está relacionada à sua atual baixa resolução. Como comparação, os caracteres impressos por numa impressora Laser, por exemplo, tem uma resolução de 600 dpi[22], e um livro impresso pode ter até 1200 dpi. Já a tela de um computador tem em média 110 dpi [23], e os papéis eletrônicos usados atualmente possuem uma resolução de 210 dpi.

Outro fator apontado por Nielsen é o fato de a Web ser um meio essencialmente ativado pelo usuário (user-driven), e que leva o usuário à percepção de que, para usar eficientemente o meio, ele deve clicar e ir adiante. Diante da tela, raramente o leitor se debruçará e considerará a informação em detalhes por vários minutos sem ter a impressão de que está perdendo tempo.

Em terceiro lugar, Nielsen aponta a imensa quantidade de páginas existentes na Web, sendo que muitas delas, se não a maioria, não são dignas de atenção. A experiência, portanto, ensina ao leitor que, em geral, não é compensador o tempo gasto lendo em detalhes uma página, mas, ao contrário, é melhor uma breve olhada em várias extraindo algum aspecto mais relevante de cada, e seguir a busca na direção mais provável. Pesquisa realizada em 1999 por Pirolli e Card, do Xerox Palo Alto Reserch Center – PARC, identificou a forma de leitura dos usuários da Web, particularmente ao buscarem uma informação, como “farejar a informação” (information scent). De maneira análoga a um animal buscando uma presa, os leitores avaliam pistas para determinar se o caminho proposto por um link o colocará ou não mais próximo da informação desejada. Se o leitor não sentir que está fazendo progresso rapidamente, ele buscará outro caminho [24]. Um agravante nessa busca é que, conforme Wurman, ela é realizada sob o que ele chama de “ansiedade de informação”. Segundo ele, ela é o “resultado da distância cada vez maior entre o que compreendemos e o que achamos que deveríamos compreender”. [25]

O quarto aspecto identificado por Nielsen é de caráter comportamental, e relaciona-se com o escasso tempo que os usuários podem dedicar à atividade de leitura, dado o crescente número de atividades que devem realizar.

Em suas pesquisas, Nielsen constatou o que chamou de “padrão F de leitura”. Ao abrir uma página com predominância de texto no navegador, o leitor focaliza os olhos numa linha horizontal próxima da parte superior da página, como que desenhando a barra superior do “F”. Em seguida, baixa os olhos ligeiramente percorrendo o lado esquerdo, e realiza uma leitura horizontal mais curta do que primeira, na analogia, fazendo o traço horizontal menor do “F”. A partir daí, desliza os olhos para baixo seguindo a parte esquerda da tela. A figura 52 foi realizada com um aparelho que registra o movimento dos olhos na leitura de uma página web, e as áreas vermelhas são onde os olhos permaneceram mais tempo.

Figura 52 – Captura do movimento dos olhos ao percorrerem a tela do computador. [26]

Em seus estudos sobre o perfil cognitivo do leitor no ciberespaço, Santaella propõe a existência de três modelos cognitivos de leitura através da história: o leitor contemplativo, o leitor movente e o leitor imersivo, sendo este último o leitor característico do ciberespaço. Embora tenha havido uma sequencialidade histórica na presença desses perfis, isso não significa que eles são cronologicamente excludentes. Observa a pesquisadora que existe, ao contrário, uma convivência e uma reciprocidade dos três.

O leitor contemplativo é predominante na baixa Idade Média, com a instituição da leitura silenciosa nas bibliotecas universitárias. Conforme já visto, a leitura silenciosa estabeleceu uma nova relação do leitor com o texto, dando-lhe tempo de considerar e reconsiderar as palavras, que, sabia ele agora, podiam ser ecoadas apenas internamente [27]. O resultante aumento de velocidade na leitura também possibilitou ao leitor o acesso a mais textos, e a textos mais complexos. Essas mudanças antecipavam o perfil de leitor que seria predominante com o advento do livro impresso. Com sua enorme capacidade de multiplicação a partir do século XV, o livro alcançou mais e mais leitores. Concordemente, os tipos de leitura são bastante variados. Porém Santaella identifica como característica marcante a privacidade, dentro da qual o leitor tem a liberdade de construir os sentidos do texto. Em essência, esse leitor não é perseguido pela urgência dos tempos. O suporte da leitura é estático, e está à sua disposição a qualquer momento.

O leitor movente surge a partir do século XVIII. A Revolução Industrial, a urbanização, a distribuição das ferrovias, a máquina a vapor, os rígidos horários das fábricas e outros fatores, alteraram profundamente as relações dos homens com o controle do tempo. Não tardou para o telégrafo e o telefone alterarem também as formas e a velocidade das comunicações. A paisagem arquitetônica urbana passou a amoldar-se aos novos ritmos, com a iluminação elétrica, galerias, parques, museus, que, em um grande conjunto, representou um aumento de estímulos sensoriais sem precedentes. A crescente produção de coisas novas exigia um ritmo de consumo que teve que ser estimulado pela publicidade, ao mesmo tempo em que em praticamente tudo passa a transformar-se em mercadoria. Esse contexto influenciou também o leitor, que teve que ajustar-se à uma mobilidade que lhe era nova. O excesso de estímulos levou à necessidade de desenvolver a capacidade de selecionar e esquecer numa escala totalmente nova. O leitor do livro imóvel e perene, “meditativo, ancorado, leitor sem urgências, provido de férteis faculdades imaginativas, aprende a conviver com o leitor movente: leitor de formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos; leitor de direções, traços, cores; leitor de luzes que se acendem e se apagam; leitor cujo organismo mudou de marcha, sincronizando-se à aceleração do mundo”.  [28]

O leitor imersivo, por outro lado, é um perfil possível apenas com a massiva digitalização dos dados. Ela torna possível que qualquer informação, textual, imagética ou sonora, seja armazenada, tratada e comunicada com a mesma linguagem binária universal, conforme explicado anteriormente. Essa informação é prontamente disponível ao leitor, bastando para isso que seu computador esteja conectado à rede mundial de computadores, por exemplo, ou as recebe por meio de dispositivos de armazenamento com grande capacidade, como CD-ROMs, DRV, ou, Blu-Rays [29]. Conforme Santaella “tendo na multimídia seu suporte e na hipermídia sua linguagem, esses signos de todos os signos são disponíveis ao mais leve dos toques, no clique de um mouse”. [30]

Essas tecnologias criam uma situação de leitura muito diferente das experimentadas até agora. O leitor não tem mais a presença de um objeto manuseável, inalienavelmente ligado ao texto. Conforme analisa Chartier:

Aliás, é difícil empregar ainda o termo objeto. Existe propriamente um objeto que é a tela sobre a qual o texto eletrônico é lido, mas este objeto não é mais manuseado diretamente, imediatamente, pelo leitor. A inscrição do texto na tela cria uma distribuição, uma organização, uma estruturação do texto que não é de modo algum a mesma com a qual se defrontava o leitor do livro em rolo da Antiguidade ou o leitor medieval, moderno e contemporâneo do livro manuscrito ou impresso, onde o texto é organizado a partir de sua estrutura em cadernos, folhas e páginas. O fluxo sequencial do texto na tela, a continuidade que lhe é dada, o fato de que suas fronteiras não são mais tão radicalmente visíveis, como no livro que encerra, no interior de sua encadernação ou de sua capa, o texto que ele carrega, a possibilidade para o leitor de embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos na mesma memória eletrônica: todos esses traços indicam que a revolução do livro eletrônico é uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler. [31]

É, sem dúvida, possível encontrar semelhanças entre este leitor imersivo e os demais perfis descritos. O leitor imersivo também usará referências como índices e paginação. De fato, há semelhanças até entre a leitura na tela do computador e nos antigos rolos. Entretanto, o leitor imersivo tem à sua disposição recursos que os demais não tiveram. A escolha entre os nexos oferecidos exige desse leitor um estado de constante prontidão, uma vez que, com nunca antes, será ele o responsável pela construção de seu roteiro de leitura. [32]

Da observação dos desenvolvimentos presentes, é possível concluir que, num futuro talvez não tão distante, o termo “imersivo” descreva ainda com mais precisão as novas formas de leitura. Conforme visualiza Murray:

Estamos no limiar de uma convergência histórica quando romancistas, dramaturgos e cineastas se movem rumo a histórias multiformes e formatos digitais; cientistas da computação começam a criar mundos ficcionais; e a audiência segue em direção ao palco virtual. Como adivinhar o que virá depois? A julgar pelo panorama atual, podemos esperar um enfraquecimento contínuo dos limites entre jogos e histórias, entre filmes e passeios de simulação, entre mídias de difusão (como televisão e rádio) e mídias arquivísticas (como livros ou videotape); entre formas narrativas (como livros) e formas dramáticas (como teatro e cinema); e mesmo entre o público e o autor. [33]

Nesse ambiente imersivo e envolvente, as figuras do autor e do leitor confundem-se. No texto impresso, particularmente no livro, a característica de obra é marcante, tem limites e autoria bem definidos e implicitamente aceitos, e que estabelecem uma clara distinção entre autor e leitor. Os dispositivos de leitura, os ebooks, resgatam esses traços em certa medida, uma vez que a leitura é realizada de modo muito similar à do livro, caso os recursos do dispositivo não permitam a navegação hipertextual. Não obstante a ausência de um suporte material perene, já que o mesmo dispositivo pode suportar muitos textos, há ainda certa preservação das características do texto como obra.

Nos ambientes hipermidiáticos, por outro lado, o formato final do texto é definido pelo leitor, que passa, portanto, a ser seu coautor. Ao autor compete muito mais a arquitetura das possíveis relações entre as várias peças de informação que irão compor o corpo de seu trabalho. O texto final, porém, não terá limites claros, uma vez que será construído segundo critérios adotados pelo leitor, e, mais ainda, de acordo com os interesses que o leitor tiver na ocasião da leitura. O mesmo leitor, com base no mesmo conjunto, poderá realizar diferentes leituras, se em cada atuação sobre esse conjunto, ele tiver interesses diferentes.

Acrescente-se a essa liberdade de seleção, o fato de que a publicação de material escrito segue caminhos completamente diferentes no ciberespaço. Virtualmente qualquer usuário pode publicar seus textos, ou, em certos sistemas, transformar os textos existentes e republicá-los.

Testemunhamos, portanto, uma fase sem precedentes na história das práticas de leitura. Como em outras épocas abordadas nesse trabalho, o presente momento acumula as práticas desenvolvidas em toda a história até agora, mas inaugura uma fase cujas possibilidades conferem ao leitor uma autonomia sem precedentes. Ao passo que algumas características desses novos leitores para parecem desenhar-se, seu estado insipiente torna necessário que muito ainda se observe e estude com respeito aos rumos que tomarão doravante as práticas de leitura.


[1] ECO, Umberto. From Internet to Gutenberg.

[2] CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro, p. 9.

[3] LÉVY, Pierre. Cibercultura, p. 157.

[4] CHARTIER, Roger. Do Códex à Tela: as trajetórias do escrito. In CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas da Europa entre os séculos XIV e XVIII, p. 101.

[5] CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita, p. 106.

[6] FARBIATZ, Alexander. Um breve olhar sobre a ruptura eletrônica do livro.

[7] FURTADO, José Afonso, p. 132.

[8] CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita.

[9] EL FAR, Alessandra. O Livro e a Leitura no Brasil, p. 17.

[10] DIETZCH, Mary Julia Martins. Relato Pessoal. Apud. FARBIATZ, Alexander. Op. cit.

[11] CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita, p. 27.

[12] FURTADO, José. Afonso. Livro e Leitura no Novo Ambiente Digital.

[13] COSTA, Sérgio Roberto. (Hiper)textos Ciberespaciais: mutações do/no ler-escrever.

[14] ROSENBERG, Jim. The Structure of Hypertext Activity.

[15] DOUGLAS, J. Y. How do I stop this thing: closure and indeterminacy in interactive narratives.

[16] LÉVY, Pierre. As tecnologias da Inteligência, p. 37.

[17] SANTAELLA, Lucia. Op. cit., p. 50.

[18] LÉVY, Pierre. Cibercultura, p. 27.

[19] Do grego kybernetes, de piloto, timoneiro, governador; em cibernética contém a ideia da utilização de um meio através do qual se pode controlar, ou comunicar-se com outro.

[20] SANTAELLA, Lucia. Op. cit., p. 40.

[21] DILLON, Andrew. Visual Search and Reading Tasks Using ClearType and Regular Displays: Two Experiments.

[22] Dots per Inch, ou Pontos por polegada. Quanto maior esse valor, melhor a qualidade da impressão.

[23] ALMEIDA, Rubens Queiroz de. In A Leitura nos Oceanos da Internet, p. 90.

[24] PIROLLI, CARD. Information Foraging.

[25] WURMAN, Richard. Op. cit., p. 38.

[26] Fonte: NORMAN, Nielsen. Eyetracking Research.

[27] MANGUEL, Alberto. Op. cit., p. 68.

[28] SANTAELLA, Lucia. Op. cit., p. 30.

[29] Disco ótico, semelhante a um DVD, porém com capacidade de armazenamento muito maior, podendo chegar a 50 GB (um DVD pode chegar a 8,5 GB).

[30] SANTAELLA, Lucia. Op. cit., p. 32.

[31] CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador, p. 12.

[32] SANTAELLA, Lucia. Op. cit., p. 33.

[33] MURRAY, Janet. Op. cit., p. 72.

© Marco Antonio Simoes 2022