2. Surgimento e expansão da Internet | História da Leitura

2. Surgimento e expansão da Internet

O conceito de redes de comunicação é muito antigo, passando, por exemplo, pela estrutura rodoviária criada pelos romanos, já mencionada nesse trabalho, que se constituiu num dos fatores que asseguraram sua hegemonia cultural. Todas as redes têm alguns elementos em comum: pontos em que algum serviço é prestado, um meio de ligação entre eles e um mecanismo que permita a comunicação entre esses pontos. Tomando o exemplo das estradas romanas, as comunidades interligadas pelas redes de estradas seriam os pontos de prestação de vários serviços: hospedagem, comércio, fabricação, etc. As estradas estabeleceram o meio físico de comunicação, e esta era tornada possível através de veículos apropriados, moeda, idioma, entre outros.

Desse ponto de vista, as redes de computadores são apenas mais um tipo de rede, com esses mesmos elementos essenciais, sendo que os pontos de prestação de serviço são os computadores e o que oferecem: pesquisa, negócios, correspondência, relacionamento, leitura. Esses são ligados por meios físicos, como cabos de cobre, fibras óticas, ondas de rádio e satélites. A comunicação entre eles é possível graças a convenções e normas internacionais chamadas de protocolos. Mais do que apenas uma rede, a Internet é um grande conjunto de redes, que se estende por todo o mundo. Uma vez que ela suporta e conduz muitos dos novos suportes do texto escrito, é importante considerar um sumário histórico de seu surgimento.

A Internet teve sua origem na Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA) do Departamento de Defesa dos EUA - DoD, no final dos anos 50. O evento impulsionador da pesquisa foi o lançamento do satélite espacial russo Sputnik, que colocava a então União Soviética à frente na tecnologia espacial. Uma das várias iniciativas empreendidas pela ARPA para retomar a vanguarda tecnológica, foi a criação de um sistema de comunicação que fosse imune a ataques nucleares. Na visão do DoD, o sistema não deveria depender de um elemento central que o tornasse vulnerável, e deveria ser capaz de se auto-reconfigurar, caso uma de suas partes fosse danificada. A visão das universidades era de que esse sistema deveria oferecer acesso livre aos professores e pesquisadores [1]. Nessa época, os computadores de terceira geração já estavam operando em várias universidades e órgãos do governo, e o objetivo era interligar esses computadores para possibilitar a troca de informações entre eles.

Como resultado das pesquisas, a primeira rede de computadores entrou em operação em 1º de setembro de 1969, e chamava-se ARPANET, em homenagem a seu patrocinador. A rede interligava inicialmente os computadores de 4 universidades: Universidade da Califórnia em Los Angeles, no Stanford Research Institute, na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara e na Universidade de Utah, conforme ilustrado na figura 39.

Figura 39 – Início da ARPANET. [2]

Do ponto de vista físico, a ARPANET utilizou um novo paradigma na comunicação de informação, chamado de “comunicação de pacotes”, o mesmo utilizado até hoje na Internet. O conceito de comunicação de pacotes havia sido proposto pelo pesquisador Leonard Kleinrock, do MIT, em um artigo publicado em julho de 1961, e logo mais publicado em livro [3]. Sumariamente, a comunicação de pacotes estabelece que cada uma das máquinas possua um endereço único na rede. A informação enviada de um computador, ou nó, para outro seria dividida em vários pacotes de informação. Assim, cada pacote conteria uma parte da informação, o endereço de destino e uma indicação de sequência. Ao receber um pacote de informação, cada máquina poderia determinar se ele era remetido para ela. Caso fosse, a máquina reuniria todos os pacotes e os colocaria na sequência, remontando assim a informação enviada. Caso contrário, a máquina propagaria o pacote para a máquina de destino, numa operação chamada “roteamento”. Logo mais, essa operação específica de roteamento passou a ser feita por máquinas dedicadas chamadas “roteadores”. Assim, os roteadores são responsáveis pelo direcionamento dos pacotes e os computadores pela sua remontagem e processamento.

Um dos arquitetos desse conceito foi Vinton Cerf, pesquisador na Universidade de Los Angeles, Califórnia, no início da década de 70. Em 1974 publicou com Robert Kahan, o artigo A Protocol for Packet Network Intercommunication, como membro do Institute of Electrical and Electronic Engineering – IEEE, um dos órgãos reguladores da Internet. O artigo é considerado um dos documentos fundamentais para a construção da Internet. Com base nele foi desenvolvido outro aspecto fundamental da Internet, a saber, seu protocolo de comunicação. Como em qualquer outro sistema, para que a comunicação seja possível entre duas entidades, é necessário que ambas obedeçam a um conjunto comum de regras (como a sintaxe gramatical de um idioma falado). Na Internet, esse padrão, ou protocolo, de comunicação é chamado de Transmission Control Protocol/Internet Protocol – TCP/IP. O TCP/IP tornou-se o padrão de facto da Internet a partir de 1980. Até hoje é utilizado e o crescente número de aplicações e serviços que dependem dele demonstram que ainda será utilizado por bastante tempo.

Esse conceito simples possibilitou dois grandes resultados: primeiro, a rede seria virtualmente indestrutível, uma vez que, caso um caminho de comunicação fosse destruído, os pacotes seriam direcionados através de outros. Segundo, a rede não teria limite de crescimento, bastando que a ela fossem conectados novos computadores para que esses trocassem informações com todos os demais. Assim, a rede inicial ARPANET estava aberta aos centros de pesquisa que colaboravam com o DoD, e já em 1975 contava com dois mil usuários. Uma vez que um mesmo sistema de comunicação era utilizado para duas finalidades (militar e acadêmica), tornou-se difícil separar as comunicações dedicadas a cada uma delas. Assim, em 1983 a rede foi dividida em duas partes com finalidades específicas: a ARPANET, para as comunicações acadêmicas, e a MILNET, orientada às aplicações militares.

Paralelamente, durante a década de 80, a National Science Foundation – NSF criou duas outras redes para fins científicos, a CSNET e a BITNET, esta última com a cooperação da IBM. Ambas as redes estavam conectadas à ARPANET, que atuava como a espinha-dorsal do sistema. O conjunto das redes era então chamado do ARPA-INTERNET, e logo mais simplesmente Internet, ainda administrada pelo DoD e NSF. Em 1990 a ARPANET já havia se tornado tecnologicamente obsoleta, e foi desativada em 20 de fevereiro, sendo substituída pela NSFNET até 1995, quando também encerrou suas atividades, e, com ela, a participação do governo dos EUA sobre a Internet.

A partir daí, a Internet deixou de ter uma autoridade central supervisora, sendo autogerida por diversas instituições e mecanismos improvisados. Os padrões adotados são registrados em documentos chamados Request For Comment – RFC [4]. As RFCs são numeradas, e representam o estado oficial de um padrão ou informação.

Em relação a outros desenvolvimentos tecnológicos, o crescimento da Internet foi muito rápido. De seu início em 1969 com apenas quatro computadores, em 1971 já contava com 23 máquinas. Apenas dez anos depois, em 1981, o número de máquinas conectadas atingiu 213 [5]. O crescimento aumentou exponencialmente, conforme demonstrado na figura 40, de modo que em 1991, esse número chegou a 617.000, e em 2001 alcançou 125.888.197. Em julho de 2006, chegou a 439.286.364.

Figura 40 - Crescimento no número de máquinas da Internet. [6]

O número de usuários hoje já ultrapassa um bilhão, distribuídos conforme a figura 41 ilustra.

Figura 41 – Quantidade de usuários da Internet, janeiro de 2007. [7]

Além desses valores que demonstrarem uma ampla presença da Internet, há uma forte tendência de crescimento. Os valores do quadro 2 analisam essa tendência entre 2000 e 2005.

Quadro 2 – Crescimento da Internet por regiões. [8]

 

 Embora a Internet ofereça uma grande variedade de serviços, dois deles foram em grande parte responsáveis pelo seu crescimento, a saber, o correio eletrônico (email) e o serviço de World Wide Web - WWW. De acordo com uma pesquisa conduzida em 2000 pela Universidade da Califórnia, Los Angeles, EUA, 81,7% dos usuários da Internet utilizam o WWW e 81,6% o serviço de email [9]. Ambos estão estreitamente ligados às práticas de leitura, razão pela qual são discutidos a seguir.

Ray Tomlinson, cientista chefe da empresa americana de tecnologia BBN, em 1971 escreveu e implementou o primeiro programa para o envio (SNDMSG) e recebimento (READMAIL) de mensagens eletrônicas. Tomlinson foi também que introduziu a utilização do símbolo “@” no endereçamento eletrônico, no formato atualmente bem conhecido: nome@domínio.com. [10] O serviço permite que uma mensagem escrita seja transmitida quase instantaneamente a qualquer outro usuário da rede. Em 2004, uma pesquisa conduzida pela USC Annenberg School demonstrou que o serviço de email é o mais utilizado na Internet, sendo que 92,5 % dos usuários possuem uma conta de email [11].

Outro desenvolvimento de enorme importância para a Internet ocorreu em 1991, no laboratório suíço CERN. Até essa época, a larga adoção da Internet como meio de comunicação deu-se mais notadamente no meio acadêmico e de grandes empresas. Os não-iniciados tinham dificuldade para utilizá-la. Além disso, a capacidade de transmissão de imagens era muito limitada, dando-se quase que exclusivamente por textos. A localização de informações era dificílima para o usuário comum.

Chefiados por Tim Berners Lee, um grupo de pesquisadores criou o serviço World Wide Web – WWW. O sistema visava organizar o conteúdo da Internet por informação, e não por localização, oferecendo aos usuários um sistema fácil de pesquisa para a localização das informações desejadas. No núcleo desse desenvolvimento estava o conceito de hipertexto, explicado em mais detalhes adiante. No contexto computacional, um hipertexto é um documento que contém referências internas a outros documentos, chamadas de hiperlinks ou simplesmente links, que permitem uma leitura não-linear. Conforme apresentado ao leitor, o hiperlink está destacado no texto através de uma alteração, como sublinhado, outra cor, ou uma imagem. O acesso ao documento para o qual o link aponta é feito, por exemplo, através de um clique do mouse sobre o link.

A estreita relação entre o serviço WWW e o hipertexto é justificada por Lévy, ao afirmar que “a World Wide Web é uma função da Internet que junto, num único e imenso hipertexto ou hiperdocumento (compreendendo imagens e sons), todos os documentos e hipertextos que a alimentam”. [12]

Sobre a realização de Berners-Lee, a revista Time afirmou.

É difícil exagerar no impacto do sistema global que ele criou. É quase gutenbergiano. Ele tomou um sistema de comunicações poderoso, que apenas uma elite poderia usar e o transformou em um meio de comunicação de massa. "Se [as redes de computadores] fossem uma ciência tradicional, Berners-Lee receberia um Prêmio Nobel", disse Eric Schmidt, CEO da Novell, para o New York Times. "O que ele realizou é dessa magnitude". [13]

A infraestrutura mínima que permite a implementação do conceito de World Wide Web compõe-se de dois sistemas, normalmente instalados em pelo menos dois computadores diferentes. Um desses computadores é chamado de servidor, no qual ficarão armazenados os arquivos e o outro computador será utilizado para o acesso a esses arquivos. Esse segundo computador é chamado de cliente. Naturalmente, entre o computador servidor e o cliente, haverá um meio de comunicação físico: um cabo de cobre, de fibra ótica ou ondas de rádio, por exemplo. A Internet compõe-se de vários servidores e vários clientes. A estrutura fundamental está ilustrada na figura 42     .

Figura 42 – Representação esquemática da Internet.

No CERN foram desenvolvidos os componentes fundamentais para o funcionamento do serviço WWW. O primeiro, o padrão em que os textos deveriam ser escritos e armazenados nos computadores para se comportarem como hipertextos, a saber, o Hypertext Markup Language – HTML. A essência desse sistema consiste na introdução de sinais (markups) no texto que indicam como o texto deve ser apresentado ao leitor. Segue-se a quadro 3 com exemplos de markups e seu efeito na apresentação na tela do computador.

Quadro 3 – Exemplos do padrão HTML

 

Para a transmissão desse arquivo escrito no padrão HTML do servidor para o cliente, é necessário um conjunto de convenções adotadas por todas as máquinas que participam nessa comunicação. Esse padrão, ou protocolo, é chamado de Hypertext Transfer Protocol [14] – HTTP. Finalmente, o CERN desenvolveu um programa (software) que funciona nos servidores e é capaz de receber a solicitação de um cliente e enviar a ele o arquivo pedido. Este programa faz com que o servidor funcione com um “Servidor de Web”, ou “Servidor de Páginas”, uma vez que os arquivos formatados para o serviço WWW são muitas vezes chamados de “páginas”, numa clara relação entre o texto digital e o texto impresso.

Também, uma vez que existem muitas máquinas na Internet, cada uma delas com muitos documentos, foi utilizado um sistema de identificação e localização dessas informações, chamado de Universal Resource Locator [15] – URL. Esse sistema de endereçamento baseia-se na organização hierárquica das máquinas da Internet, chamado de name space, cujo conceito é ilustrado abaixo, na figura 43.

Figura 43 – Esquema simplificado da estrutura de nomes na Internet.

 

Este esquema foi proposto pelo Dr. Paul Mockapetris em 1983, enquanto trabalhava no Informational Science Institute, e documentado inicialmente nas RFCs 882 e 883. [16] A estrutura assemelha-se a uma árvore invertida, cuja origem é chamada simplesmente de raiz. A raiz é dividida em partes chamadas “domínios”, com finalidades específicas. Assim, o domínio “edu” agrupa as máquinas, serviços e entidades dedicadas a fins educacionais, como universidades e colégios. O domínio “com” agrupa empresas comerciais. O domínio “gov”, entidades governamentais, e assim por diante. Além desses, na raiz ainda se encontram domínios reservados para países, identificados por duas letras: “br” para Brasil, “de” para Alemanha, “it” para Itália etc. A descrição da finalidade desses domínios é determinada pela RFC 1591, de J. Postel, 1994. Subsequentemente, conforme ilustrado na figura 51, os domínios são divididos em subdomínios, cada um dos quais, também pode ser subdivido, compondo assim uma estrutura hierárquica, na qual a identificação de uma máquina ou serviço, será única. Assim, a URL www.bn.br aponta para a máquina “www”, da entidade “bn” (Biblioteca Nacional), de “br”, Brasil.

Assim, já temos um padrão para a formatação do arquivo (HTML), um protocolo para transportá-lo do servidor até o cliente (HTTP), um sistema de identificação de cada máquina à qual requisitamos um documento, e um programa que torna essa máquina capaz de atender à solicitação dos clientes. Porém, o componente que universalizaria a utilização do serviço WWW surgiria em 1992, e foi criado pelo então estudante na Universidade de Illinois, Marc Andreessen juntamente com seu colaborador Eric Bina. Eles desenvolveram uma interface gráfica que facilitava grandemente a utilização do serviço WWW. Essa interface passou a ser chamada de “navegador”, e o primeiro navegador desenvolvido por eles e disponibilizado gratuitamente em 1993 chamava-se “Mosaic”. Em 1994, milhões de cópias do Mosaic já estavam em uso, e, nesse mesmo ano, associaram-se a James H. Clark, na fundação da empresa Netscape, para a produção do primeiro navegador comercializado, o Netscape Navigator, lançado em outubro de 1994. Conforme explica Castells, a partir daí “logo surgiram novos navegadores, ou mecanismos de pesquisa, e o mundo inteiro abraçou a Internet, criando uma verdadeira teia mundial”.  [17]

Um dos fatores que assegura a crescente presença na Internet como um meio universal de comunicação é sua arquitetura aberta. Do ponto de vista tecnológico, os protocolos usados para comunicação estão disponíveis sem custo para todos os desenvolvedores de sistemas, limitando seriamente as restrições governamentais. Parte dessa arquitetura aberta se deve à sua concepção original, um esforço então utópico de garantir a perenidade do sistema. Além isso, deve-se ao esforço inovador da cultura hacker, que, em seu sentido original eram desenvolvedores de sistemas defensores da livre acessibilidade aos códigos. Nessa linha de atuação, um acontecimento notável deu-se em 1990, com a difusão gratuita pela rede do sistema operacional Linux, criado pelo jovem cientista finlandês Linus Torvalds, da Universidade de Helsinki. A quebra de paradigma se deu pelo fato de que, sendo aberto, o sistema pode ser aprimorado pelo trabalho conjunto de milhares de desenvolvedores, que o levaram a um estágio de qualidade suficiente para abalar sistemas proprietários de grandes fabricantes, como Microsoft, Novell e Sun.

Esse desenvolvimento causou um grande impacto sobre as práticas de leitura. Conforme afirmou Chartier:

(...) vivemos numa época em que o livro impresso coexiste com um protótipo de livro eletrônico, por meio da Internet a transmissão e a recepção da escrita ganham novos contornos. A antiga oposição entre, de um lado, o livro, a escrita, a leitura e, de outro, a tela e a imagem foram substituídas por uma situação nova que propõe um novo veículo para a cultura escrita e uma nova forma do livro. Daí, a ligação altamente paradoxal entre a proliferação da escrita em nossa sociedade e a temática obsedante da “morte do leitor”. [18]


[1] BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Op. cit., p. 10.

[2] Fonte: History of the Web. Oxford Brookes University 2002.

[3] KLEINROCK L., Communication Nets: Stochastic Message Flow and Delay.

[4] Disponíveis em <http://www.rfc-editor.org>.

[5] LOTTOR, M. RFC 1296 – Internet Growth. Janeiro 1992.

[6] Fonte: ZAKON, Robert. Internet Growth.

[7] Fonte: Internet Statistics.

[8] Fonte: Internet Statistics.

[9] COLE, Jeffrey. UCLA Internet Report: Surveying the Digital Future –  2004.

[10] BBN TECHNOLOGIES. Historical Highlights of the Internet.

[11] COLE, Jeffrey. UCLA Internet Report: Surveying the Digital Future –  2004.

[12] LÉVY, Pierre. Cibercultura, p. 27.

[13] QUITTNER, Joshua. Tim Berners-Lee: Scientists and Thinkers.

[14] Protocolo de transferência de hipertextos.

[15] Localizador universal de recursos.

[16] Posteriormente substituída pela RFC 1034 – Domain Names, de MOCAPETRIS, P. novembro 1987.

[17] CASTELLS, Manuel. Op. cit., p. 9.

[18] CHATIER, R. Apud GONTIJO, Silvana. Op. cit., p. 34.

© Marco Antonio Simoes 2022